Abaixa o Braço por Ana Roman

Froiid
Julho 12, 2025

Preciso começar dizendo que, por boa parte da minha vida, futebol não foi exatamente uma paixão. Aos 5 anos, eu me tornei são-paulina meio compulsoriamente: cresci cercada de tios que insistiam em hastear a bandeira do São Paulo em toda festa de fim de ano. Um dia, um deles apareceu com algumas camisas de times e me pediu para escolher uma – aquilo determinou, dali em diante, minha “identidade” futebolística. Por algum motivo estético (ou talvez certo impulso inconsciente concretista, típico de quem cresceu entre grades paulistanas e uma paleta de vermelho, preto e branco[1]), acabei escolhendo a do São Paulo. Ao longo dos anos, eu me envolvi com outros esportes – vôlei, handebol –, e o futebol ficou sempre à margem. Até que, por volta dos 14 ou 15 anos, entendi que, no Brasil, falar de futebol nunca é apenas falar de esporte.              

Lembro com clareza o impacto de estudar a ditadura militar e começar a perceber os vínculos entre futebol, política e a formação de memória coletiva no Brasil. Foi nesse momento que comecei a me interessar por histórias de torcidas organizadas, suas formas de resistência, suas disputas com os aparelhos do Estado e os modos como ocupavam os estádios como espaços de linguagem. Aos poucos, fui me aproximando também de outro tipo de jogo: aquele que se faz nos arquivos. Descobri que instituições como o Museu do Futebol, aqui de São Paulo, vinham trabalhando com uma museologia comprometida com as vozes comunitárias, com os discursos que escapam ao acervo hegemônico. E, sem perceber, fui me envolvendo mais: não me tornei atleta, mas comecei a jogar despretensiosamente – inclusive, no ano passado, participei da Copa dos Museus, e meu time feminino levou a prata. É até irônico estar agora escrevendo este texto. Mas talvez não surpreenda: afinal, nunca foi só sobre futebol – e é justamente por isso que ele ainda nos mobiliza.

Conheci o trabalho de Froiid durante uma edição da Videobrasil, em São Paulo. Desde então, acompanho a forma pela qual o artista mobiliza elementos da cultura popular brasileira para tensionar narrativas históricas estabelecidas. Apesar do humor e da leveza aparente, seus trabalhos operam um gesto de revisão crítica: retomam imagens, enunciados e objetos que compõem o imaginário coletivo para reconfigurá-los em outras chaves. Poderíamos dizer, talvez, que Froiid não busca apenas representar memórias coletivas, mas reencenar os modos pelos quais elas foram construídas, disputadas ou silenciadas – produzindo, com isso, contranarrativas que escapam às formas hegemônicas de registro.

Em uma perspectiva mais teórica, poderíamos dizer que a forma pela qual o artista opera faz reverberar uma discussão mais ampla sobre os usos do arquivo na arte contemporânea. Sobre esse assunto, gosto muito de uma entrevista nos anos 2000, em que Hal Foster, importante crítico da arte e da cultura visual, menciona uma frase do arquiteto Rem Koolhaas: “Não há passado suficiente para dar conta de tudo”[2]. A provocação de Foster evidencia o dilema de um tempo saturado de ruínas e faltas, no qual o gesto artístico recorre cada vez mais ao passado – não por nostalgia, mas pela urgência de reconstituir vínculos, rastrear apagamentos e criar possibilidades críticas a partir do que foi deixado de fora. Para Foster, o que ele chama de “impulso de arquivo” não visa restaurar totalidades, mas propor redes relacionais que desafiem o apagamento neoliberal da história. Esse impulso se manifesta em práticas que, em vez de simplesmente documentar, fabulam: não organizam o passado em linhas retas, mas o embaralham com o presente e com o que ainda está por vir. Trata-se, como mostra Foster, de produzir contra-arquivos que desconfiem das promessas de neutralidade do documento e que encenem novas formas de conhecimento e pertencimento.

Essa leitura encontra eco também nas proposições da filósofa Ariella Aïsha Azoulay[3]. Suas colocações se fundamentam em uma crítica à colonialidade e na compreensão de que os arquivos encapsulam e perpetuam práticas de poder e dominação. Para ela, temos o compromisso de construir o que ela chama de uma história potencial, ou seja, de uma recusa à busca irrefreável pelo novo e de dar a ver mundos historicamente destroçados pelas relações de dominação. Trata-se de levar o passado a sério, não como uma relíquia a ser trancada num arquivo, exposta nas vitrines de um museu ou dissecada por especialistas em uma biblioteca, mas sim como uma proposta política de como podemos viver uns com os outros.⁠

A partir de sua perspectiva, engajar-se com os arquivos de forma crítica é também enfrentar os silenciamentos que eles carregam – uma tentativa de ajuste de contas com as narrativas hegemônicas, por meio da reavaliação do que foi registrado, esquecido ou suprimido. Esse processo exige o que Azoulay chama de “desaprender” o arquivo: desestabilizar as categorias que o organizam, reconhecer as práticas que sustentam relações de dominação e abrir espaço para outras formas de escuta e inscrição. Desaprender o arquivo é essencial para se associar a outros que resistiram a ele e para recuperar o que ela chama de mundialidade dos objetos, ou seja, recontextualizando-os e reconhecendo suas origens e seus significados. A autora ainda ressalta que os artistas arquivistas interessados em fragmentos e testemunhos podem oferecer uma visão crítica e alternativa da história, sem o seu valor tradicional “aurático”. Para ela, a arte tem grande potencial de desafiar os limites e as inscrições de poder no campo arquivístico.

Os trabalhos de Froiid podem ser lidos à luz dessas formulações, como exercícios de reativação crítica que fazem do passado um campo de ficção política. Em sua exposição individual Abaixa o Braço, o artista mobiliza camadas da memória coletiva brasileira – entre o esporte, a guerra, o design gráfico, a pedagogia e o espetáculo – para reorganizar signos, afetos e coreografias do corpo social. Em vez de apenas denunciar apagamentos, suas obras atuam como contra-arquivos: tensionam as fronteiras entre documento e imaginação, entre testemunho e invenção. Ele não busca restaurar uma versão fiel da história; ele a contorce, fabula com seus resíduos, mistura inteligência artificial com ditados populares e arquétipos visuais com lampejos de memória. Nessa operação, arte e política deixam de ser campos apartados e tornam-se estratégias simultâneas de reconfiguração do sensível e de disputa pela memória.

O título da exposição, Abaixa o Braço, é emprestado de uma canção composta por Ataulfo Alves nos anos 1940, durante o contexto da Segunda Guerra Mundial. Em tom satírico e crítico, a música ironiza as pretensões autoritárias do Eixo, ao mesmo tempo que celebra a aliança democrática das Américas. A letra invoca imagens políticas e geopolíticas por meio do jogo de palavras e do samba, propondo uma resposta popular e desobediente à lógica da guerra. Ao evocar esse repertório, Froiid constrói um elo entre humor, crítica e resistência.

 Em tempos atuais, marcados pelo recrudescimento do autoritarismo e pela reatualização de discursos fascistas, o gesto de “abaixar o braço” deixa de ser apenas um sinal de rendição: torna-se uma recusa ativa à violência, um chamado à memória como forma de combate. A exposição costura esses sentidos para explorar como guerra, esporte e espetáculo são arenas de disputa simbólica, em que o corpo é continuamente moldado, mobilizado e representado e a arte pode ainda operar como desvio, interrupção e reinvenção.

Entre os trabalhos incluídos na mostra, destaca-se a série E AGORA, composta de telas em vermelho e branco que ativam uma visualidade tática, situada entre o campo militar e o esportivo. As formas geométricas – retângulos inclinados, sobrepostos e ritmados – evocam tanto placas de sinalização quanto panos de jogo. ​​A série dialoga diretamente com a pintura E Agora (1978), de Carlos Scliar. Scliar foi um importante artista modernista, pracinha – ou seja, combatente da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial – e autor de cadernos de guerra. Na tela original, o texto parcialmente encoberto por uma lamparina sugere que apenas uma parte da história pode ser iluminada. Froiid retoma essa referência não pela imagem da lamparina em si, ausente em suas obras, mas pela vibração do fundo, como se as superfícies se movessem e projetassem zonas de sombra e revelação. Essa tensão entre figura e abstração e forma e sentido atravessa duas grandes tradições da arte brasileira: o concretismo e a nova figuração. A estrutura geométrica de suas obras remete ao legado construtivo, mas é subvertida pelo uso da palavra e pelo deslocamento dos planos, que desestabilizam a ordem compositiva e abrem espaço para uma visualidade convulsiva, que é marcada por ruído, falha e instabilidade.

As pinturas também reativam uma memória silenciada da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Ao mobilizar a figura dos pracinhas, soldados brasileiros enviados para combater na Itália, Froiid convoca uma narrativa muitas vezes ausente do imaginário coletivo. Quem foram esses homens? Que histórias foram contadas, e também esquecidas, sobre sua atuação? Em geral, persiste a ideia de que o Brasil é um país que não participa de guerras, um mito que apaga as contradições e violências de sua presença em conflitos externos e também internos. Ao evocar esse capítulo histórico, E AGORA inscreve o espectador em um campo de disputa entre o que se lembra e o que se apaga, entre a solenidade do heroísmo e a precariedade da memória nacional.

Em Bola Dente de Leite, Froiid condensa em uma única imagem a tensão entre infância, autoritarismo e memória coletiva. A pintura em grande formato apresenta a clássica bola de vinil, ícone das brincadeiras populares brasileiras das décadas de 1980 e 1990, aqui acompanhada de uma figura infantil estilizada, que corre alegremente com chuteiras, uniforme esportivo... e um capacete militar. A cena é construída com cores chapadas, traços limpos e tipografia marcante, em clara referência à linguagem gráfica das embalagens e propagandas de brinquedos da época. Mas o que se vê é um anúncio impossível, no qual a brincadeira e a guerra convivem na superfície. O capacete, elemento de destaque, transforma o jogo em treinamento simbólico — preparação para a obediência, o controle e a performance de uma virilidade precoce.

Na série fotográfica O Peixe pela Boca, Froiid apresenta seis retratos de homens atléticos, beijando troféus e camisas de futebol com gestos performáticos. Embora os objetos remetam ao universo esportivo, não é possível identificar a quais clubes ou competições pertencem – há apenas um eco formal, genérico, de vitórias padronizadas. As imagens são geradas por inteligência artificial: os rostos, músculos e movimentos são compostos de algoritmos treinados para simular um corpo idealizado, mas sem origem reconhecível. O gesto do beijo, repetido com variações mínimas, deixa de ser expressão de emoção e passa a funcionar como emblema de uma narrativa visual coletiva – a da masculinidade celebrada, da glória esportiva, da adesão simbólica a um grupo. Ao exagerar esse gesto até a artificialidade, o artista propõe um comentário visual sobre o que se espera do corpo masculino no esporte e na cultura de massa, especialmente do corpo racializado, frequentemente encarregado de representar força, entrega e espetáculo.

Há ecos, ainda que indiretos, de artistas que investigam como corpos racializados são moldados para o olhar público[4]: fabricados, exibidos e consumidos dentro de circuitos simbólicos de poder. Froiid introduz uma camada de ruído nesse processo: suas imagens, embora visualmente limpas e eficazes, soam estranhamente vazias, como se algo nelas estivesse deslocado. O título da série evoca o ditado popular que associa a fala à armadilha: é pela boca que se captura o peixe, ou, nesse caso, que se revela a lógica do espetáculo.

Se em O Peixe pela Boca o gesto é ruidoso – repetido, amplificado, fabricado –, em O Bom Cabrito Não Berra, Froiid aposta na força do silêncio. Agora trabalhando com a fotografia direta, feita por ele mesmo, o artista apresenta a imagem de um jogador de várzea em postura contemplativa, isolado em um campo sem ação aparente. A obra, que integra uma série maior, mistura encenação e documentação para capturar o intervalo: o momento em que o jogo ainda não começou ou já terminou. O ditado popular que dá nome à obra sugere não apenas contenção, mas astúcia: um silêncio que observa, que calcula, que escolhe não se expor. Esse não acontecimento torna-se, aqui, uma forma de arquivo: não da glória, mas da pausa; não do gesto heroico, mas do que escapa à narrativa.

Outra expressão com animal no título dá continuidade à exposição, agora transbordando o espaço da imagem e ocupando o espaço expositivo. Em Galinha Caolha Procura Poleiro Mais Cedo, Froiid apresenta quatro campos de futebol de botão pintados diretamente em placas de MDF encaixadas nas colunas da galeria. O título, inspirado na canção homônima de 1977, interpretada por Velha da Portela, antecipa o modo como a fabulação opera aqui: por metáforas, ditos populares e estratégias de sobrevivência. O samba evoca a figura da galinha desconfiada que, por prudência, procura seu poleiro antes de escurecer. A letra sugere astúcia, antecipação e cuidado – valores cultivados em contextos de vulnerabilidade, nos quais prever o movimento do outro pode ser questão de permanência. Froiid desloca essa imagem para o campo da arte, criando tabuleiros sabotados e distorcidos que obrigam o corpo a reposicionar o olhar e a repensar as regras do jogo. Como a galinha do samba, o jogador aqui não busca o troféu, mas um lugar seguro: uma forma de continuar jogando mesmo quando o tabuleiro parece ter mudado.

Nesse gesto, o artista também homenageia Geraldo Décourt (1911-1998), pintor modernista e criador do futebol de botão no Brasil. Décourt não apenas inventou um jogo, mas lhe deu forma cultural: estabeleceu regras, organizou campeonatos, criou um vocabulário próprio. Sua prática transitava entre a arte e o lúdico, entre a tela e o tabuleiro, sustentada pela crença de que o jogo podia ser uma linguagem. O artista retoma essa tradição, desestabilizando-a: seus campos não seguem normas fixas nem simulam a lógica esportiva, pois são espaços tortos, marcados pelo improviso, que convocam o espectador a se deslocar. Se Décourt estruturou o jogo como sistema, Froiid o transforma em metáfora: o poleiro buscado não é o da vitória, mas o da memória, da astúcia e da possibilidade de seguir jogando.

O gesto de jogar botão atravessa a exposição de maneira insistente. Nos painéis luminosos Ribaltas, ele ressurge condensado na imagem do polegar – dedo decisivo no futebol de botão, aquele que empurra a peça e inicia a jogada. Instalados na parte superior das mesas, os desenhos dos “dedinhos” tornam-se emblemas ambíguos: ao mesmo tempo apontam, comandam, encenam. Como ribaltas de um palco, projetam luz sobre o jogo simbólico que perpassa toda a mostra. Aqui, o gesto é concentrado e mínimo, mas, ao mesmo tempo, está sempre fora de lugar: deslocado, reiterado, descontextualizado. Já não sabemos ao certo qual movimento ele aciona ou a que partida pertence. Sua repetição evoca memórias, mas não as fixa.

Ao escolher esse gesto como figura recorrente, Froiid reafirma algo que atravessa toda a exposição: a ideia de que há histórias inteiras guardadas em movimentos mínimos – beijos, toques, silêncios, pausas. Não se trata de encenar o jogo, mas de sugerir que ele segue em curso, mesmo quando já terminou. A prática de Froiid opera, assim, contra a fixidez do arquivo: não busca restaurar o que foi perdido, mas fabular o que poderia ter sido. Seu gesto é o de um jogador que conhece as regras, mas opta por outra jogada: feita de ruídos, desvios, reinvenções. Talvez por isso, no fim, abaixar o braço não seja um gesto de rendição, mas de atenção. E, sobretudo, de recusa. Diante dessa exposição, volto à lembrança de quando já adolescente tentei entender o futebol como forma de convivência. Se naquela época não encontrei meu lugar no campo ou na torcida, talvez seja agora, nesse jogo de imagens, que reencontro o gesto que me escapava: outro futebol possível, feito de pausas, silêncios e pequenas fabulações.

 

 

Ana Roman

julho de 2025



[1] Isso é uma ironia. :)

[2] Foi impossível encontrar a referência exata na qual a frase de Rem Koolhaas foi dita. A citação foi extraída do texto: ZACARIAS, Gabriel Ferreira. “Entretien avec Hal Foster”, in: Marges [on-line], 25 | 2017, http://journals.openedition.org/marges/132.

[3] AZOULAY, Ariella Aïsha. História Potencial. São Paulo: Ubu Editora, 2023.

[4] Ver, por exemplo, o trabalho do artista Hank WillisThomas.