O teatro do silêncio por Victor Gorgulho

Tatiana Blass
Junho 24, 2025

Nem toda presença implica um som, um ruído, um por quê, um objetivo definido, um destino final. Interpretada à risca, tal constatação soa ao menos, óbvia – ou mesmo até pleonástica. Em meio ao caos contemporâneo – um tempo marcado pela eficácia, pela cacofonia e pela inquietação de tantas e distintas ordens – é fácil, no entanto, deixarmos de compreender ou elaborar acerca de todo ruído que nos cerca. Através de uma produção artística que atravessa múltiplos suportes e práticas, a artista Tatiana Blass (São Paulo, 1979) constrói, há mais de duas décadas, o corpo de uma obra que se revela tão coeso quanto – metaforicamente – volátil. Tão potente quanto falível, tão belo quanto frágil. Edificado e derretido. Invariavelmente, no entanto, exuberante em sua riqueza imaginativa.

 

O trânsito entre meios como a pintura, a escultura, o vídeo, a performance e a instalação é, sem dúvida, uma das marcas indeléveis que sua produção inscreve na história recente da arte contemporânea brasileira. Seja no âmbito institucional, comercial, independente, no cubo branco ou na rotina de seu ateliê, Blass edifica a espinha dorsal de uma obra altamente relevante não apenas por estes cruzamentos entre distintos campos de realização artística como pelo ímpeto em desafiar (contrariar, interromper) o curso original da função das coisas. Coisas estas que estão pelo mundo, que nos rodeiam e nos são familiares.

 

Se ao longo de sua trajetória a artista deixou-se atravessar e empregou em suas obras referências de campos que vão da literatura à música e além, sua atual exposição na Albuquerque Contemporânea, aponta – ainda que nunca em uma direção exata, certeira, como em sua obra, de um modo geral – para o interesse da artista pelo teatro e pelo cinema, aqui apresentado em um conjunto de trabalhos inéditos.

 

Na série de pinturas "Meia-luz" – cujo título é inspirado no filme "Gaslight", dirigido por George Cukor, em 1944 – somos apresentados a composições que evocam a plasticidade cênica da obra de Pina Bausch, assim como referenciam a produção cinematográfica do diretor sueco Roy Andersson. O peculiar uso da tinta à óleo, nestes trabalhos, se dá através de uma fatura em que a tinta dilui-se pela superfície da tela, em camadas sobrepostas, que acabam por fundirem-se, tornando frente e fundo membros de uma mesma composição.

 

Instâncias quase indistinguíveis. São seres que observamos (voilà!) à meia-luz – ainda que frequentemente pintados em tons vibrantes e cores saturadas. Melancolia e pulsão de vida caminham juntos nas cenas criadas por Blass.  Figuras mezzo humanas, mezzo abstratas; seres a desintegrarem-se em matéria pictórica, corpos que se encontram, flutuam, transitam livremente pela tela como atores sobre um palco. Cai o pano, quebra-se a quarta parede.

 

 

 

 

 

Já na série "Teatro de Arena – Tornado subterrâneo", Blass realiza composições figurativas com materiais como a cera sobre superfícies de bronze fundido, teatros quase tridimensionais a buscarem aumentar, de alguma forma, tal volume antes silenciado pelo grupo de pinturas anteriormente citadas. Pinturas estas que aparecem, também, realizadas sobre placas de vidro de grande escala, evidenciando a habilidade da artista em trabalhar em distintas e diversas superfícies pictóricas. Estas últimas, são pinturas realizadas no lado oposto daquele ao qual nos posicionamos como observadores atentos, criando recortes e intervalos entre os campos de cor na superfície do vidro e fazendo o mundo aparecer por meio de vestígios, em uma construção rigorosa e, ao mesmo tempo, sublime de cor e forma.

 

É este silêncio abafado ­– volume de som compulsoriamente interrompido pelas ações criativas de Blass – que alcança voltagem máxima na instalação "Metade da fala no chão – Bateria Preta". Neste trabalho, somos confrontados com os fragmentos desconstruídos de uma bateria musical, em todo o seu conjunto de peças. Blass, no entanto, aperta o botão "mute" (digamos assim), ao passo em que a cera micro cristalina espalha-se pelo chão do espaço expositivo como uma matéria disforme que não apenas impossibilita o som como arquiteta um silêncio descomunal.

 

Estamos diante de trabalhos de uma artista cujo corpo de sua obra é sempre revelado como um organismo frankensteiniano, um bicho em peças, tramas que perdem sua função original, enfim. Silêncios que são revelados após o excesso do barulho do mundo que nos cerca nos conduzir ao desejo de assistir a um teatro do silêncio em si. Nada a ser ouvido, muito a ser dito. Estamos a ver o som e a escutar as imagens, enfim.