Em 1989, no último andar do pavilhão da Bienal de São Paulo, sem climatização e abafado por conta de um forte sol do verão, Nuno Ramos viu algumas de suas pinturas derreterem. Tratava-se de um conjunto de obras feitas a partir de uma mistura pouco convencional, pela qual o artista logo tornou-se conhecido: uma miscelânia alucinada de tinta à óleo, parafina, vaselina, óleo de linhaça, arame, pedaços de tecido, metais amassados, borrachas, algodão e outros componentes difíceis de identificar.
Desde então, com certas variações, o artista passou a “refazer” periodicamente esses “quadros perdidos”, de algum modo retornando - eis uma hipótese a ser pensada - não só às obras que apresentou na Bienal, quanto à própria cena de sua desintegração; seu “pântano de origem”. É como se tal falha logística, espécie de trauma na linguagem, acentuada ainda por uma hostilidade climática, tivesse aberto não só uma perspectiva de leitura dessas obras, potencializando seu procedimento, mas também instaurado uma nova forma de fazer. Afinal, desde então, sua produção esteve interessada em desafiar a capacidade de convivência e resistência dos materiais mais diversos, tornando a superfície da pintura uma espécie de carne viva, destinada a sustentar um mal-estar que suspende pretensas conciliações. Derreter, portanto, era uma maneira de realizar uma fantasia que já estava contida na obra: a de moldar um mundo ao seu modo.
Ainda nos anos 1990, ele acrescentaria novos materiais nessa superfície pegajosa: espelho, vidro, folhas metálicas, canos de aço e chapas de latão que fariam a pintura se projetar para fora ainda mais acintosamente. Os quadros crescem não para os lados ou para cima, mas para a frente, na direção de quem olha, em tom não menos ameaçador. Seguir avolumando tais obras era assumir, com total desembaraço, sua vocação monstruosa.
Como afirmou numa conversa este ano em seu ateliê, em tom de blague, Nuno Ramos se sente alimentando um monstro durante a produção dessas pinturas. E ao definir “o lentíssimo Frankenstein” em um de seus ensaios, argumenta que sua forma consistia em “juntar pedaços mortos num todo vivo”. Ou seja, como na sua própria pintura – criatura pesada e histriônica. De predisposição magnética e intensidade condensada, a obra nos leva a imaginar que seria capaz de atrair ainda uma infinidade de outros destroços, restos de um mundo em decomposição, incapaz de distinguir espaço e forma ou constituir imagem.
Se ao longo dos anos o artista desafiou a capacidade que teriam esses materiais empilhados (esses “quadros”) de se sustentarem na estrutura superficial e retangular da tela é porque seguiu atraído por certa dimensão catastrófica da experiência artística, bem como por regiões limítrofes de desintegração formal. “Esse momento do ‘quase’ é o que eu gosto. Se eu pudesse fixar um momento, eu fixava isso. Essa hora de transição. Eu não gosto quando cai, mas eu realmente não gosto quando fica”, declarou em outra entrevista.
Estas novas obras, no entanto, além de não mais derreterem e de apresentarem uma paleta mais histérica, já distante do baixo contraste tonal dos anos 1980, passaram a receber títulos que em geral fazem referências a outros discursos e objetos culturais, como é do gosto do artista: “Uns”, “O sol não adivinha”, “La noche oscura”, “Los pasos perdidos”, entre outros. Como ocorre com as formas, as cores e os materiais no território do quadro, os títulos não têm necessariamente relação entre si, e são como fragmentos que se justapõem e se aglutinam na superfície da tela; um modo de expandir não apenas o “vocabulário” das obras como, sobretudo, o seu próprio volume.
“Los pasos perdidos”, em especial, se apresenta como chave de leitura para a mostra, já que também dá nome à exposição. Título de um romance do escritor cubano Alejo Carpentier, o livro narra uma viagem de volta ao passado. Trata-se do relato de um músico que decide viajar às suas origens, na selva venezuelana, em busca de instrumentos musicais primitivos. Ao adotar o título para a exposição, Nuno Ramos parece apontar para algo (“los pasos”) que deve ser rememorado, apesar de seu extravio.
Como se sabe, a obra do artista lança constantemente mão não apenas de uma colagem de citações, como convoca outras vozes na formação de um coro de dissonâncias. Na mostra, outra menção expressiva é a Kasimir Malevich, aquele para quem, na Rússia do início do século XX, as formas tradicionais deveriam ser destruídas em busca de um grau zero capaz de revelar o verdadeiro material da arte. “Transformei a mim mesmo no zero das formas e surgi como o zero de um”, diria o suprematista, apostando numa tábula rasa contrária aos procedimentos de Nuno. Atravessar a catástrofe do progresso e mobilizar a destruição como força propositiva; reduzir, começar de novo, voltar à origem da linguagem, tocá-la pela primeira vez.
Em um trabalho inédito, três obras de Malevich foram reproduzidas em tamanho original em pó de mármore sobre pedra, cuja imagem será progressivamente apagada por uma maquininha elegante que avança três centímetros por dia. Os escolhidos de Nuno não são os hits de quadrados pretos e brancos, mas versões mais heterogêneas, compostas por quadriláteros e linhas coloridas que dançam pelo espaço branco (algo neles faz lembrar algumas das melhores obras do neoconcretismo brasileiro, aqui decantado à uma de suas origens). Além disso, são exemplos que reforçam que Malevich não tem o mesmo rigor de Mondrian e que, apesar de primárias, suas formas são imperfeitas, por vezes mais dinâmicas e, talvez por isso, mais vivas. Um pouco falhas, elas carecem de uma virtualidade ideal, rendendo um ruído entre texto vanguardista e visualidade.
Em alguma medida, Nuno refaz o gesto de desfiguração progressiva que fundamenta o próprio Suprematismo. Ironicamente, a destruição aqui tem ares contemplativos (a lentidão, as mandalas de areia), o que rememora a mística malevichiana; sua ambição em atingir o “nada revelado”, superando a representação para pôr a nu o que transcende. Porém, finalizado o ritual, o que sobra não é o almejado grau zero, mas um punhado de cinzas, um rastro desordenado, o registro de um movimento que deforma a composição e entremeia suas cores produzindo, em última instância, a própria imagem de seu apagamento.
O dispositivo que as destrói é ao seu modo uma máquina de produção de desejo, ecoando algo da perversidade industrial de Duchamp e Man Ray. Delicada, apesar de violenta, sua teimosia em desfazer as imagens é explícita e pode soar controversa, mas isso não é tudo. Se ela produz desejo, o resultado do seu trabalho não se apresenta sob a forma de um produto, e sim de um borrão, na melhor das hipóteses um desenho informe, como se voltasse a algo das pinturas outra vez. Na versão do artista, o que o grau zero encontra é não a possibilidade de uma nova ordem, mas uma versão do caos, em miniatura.
A obra se constitui como um agenciamento que se divide e se conecta em três partes: é um desenho em areia, na reprodução de Malevich, múltiplo provisório que deve ser visto no início da mostra e que logo será perdido; é também a própria máquina desejante que funciona ao longo de todo o período expositivo; e finalmente o borrão na versão final. Ao solicitar do espectador que seja vista assim, em sua duração, como se fosse um pequeno teatro do absurdo, ou um organismo vivo, a obra questiona seu próprio estatuto de imagem em nome de uma existência mais móvel.
Por fim, as pinturas sobre papel (ou desenhos, como o artista intitula) parecem prestar tributo a Mark Rothko, para quem a cor é coisa desmaterializada, jamais refém dos contornos da forma - fruto da melhor fusão entre Turner e Matisse. Mas se o mestre judeu aspirava à ordem, à estabilidade e à assimetria equilibrada, em busca de um ideal metafísico conquistado por meio da forma abstrata (eis a lição de Mondrian), em Nuno resta desconfiança, tensão, desintegração e materialismo. Se em Rothko a cor vaporosa é resultado de uma espécie de técnica de aquarela traduzida para o óleo, nos desenhos de Nuno o papel pesa com camadas de tinta espessa. Rothko organiza seu fluxo compositivo a partir de uma sucessão de faixas horizontais dispostas verticalmente, enquanto Nuno joga com a sobreposição, estabelecendo uma relação crítica entre figura e fundo.
Nessas obras, o artista produz relevos geométricos encorpados de tinta que, cobertos por camadas subsequentes, fazem da forma uma sombra guardada e sufocada sob a superfície, por vezes buscando emergir, em conflito. Tal procedimento é ainda conjugado com linhas orgânicas adquiridas através de monotipia, produzindo sulcos finos que se espalham e “machucam” as grandes massas de óleo. Mais velozes e feitos “às cegas”, eles se contrapõem a um efeito mais contemplativo de fundo. Aqui, a fantasia incorpórea do sublime está abafada pela realidade material da pintura, e existe senão como memória ou eco, já desencontrada de sua ambição espiritual.
“Los pasos perdidos” é uma exposição cuja força, por meio de seus três conjuntos de obras, parece residir nesse movimento duplo de, por um lado, voltar a observar um objeto amado e, por outro, refazê-lo à sua maneira, reconstruir algo de sua primeira energia. Nesse movimento, muito fica pelo caminho - perde-se algo do referente, o objeto perdido nunca mais será o mesmo, erra-se na tentativa de reprodução - mas uma intensidade renovadora emerge. Ou seja, a obra troca de pele, e faz sua própria metamorfose.
Essa é, afinal, para Nuno Ramos, conforme diz na entrevista já mencionada, “a coisa toda de fazer arte”: “tentar voltar ao primeiro livro, voltar à primeira versão do livro que eu li, onde as coisas estavam ali mesmo, me esperando”. Na ocasião, o artista se referia a uma releitura decepcionante que fez do livro mais amado da sua infância, Robinson Crusoé, refletindo a partir daí sobre qual seria “o sentido de alguém ficar tentando refazer o que se perdeu”. Sua conclusão é reveladora justamente ao esclarecer uma espécie de motor de sua obra. “Houve para mim uma separação de algo que amei perdidamente”, disse o artista sobre o livro de Daniel Defoe, mas poderia estar falando das suas pinturas derretidas, seus monstros, de Rothko e Malevich, los pasos perdidos.
Pollyana Quintella e Victor da Rosa
Março de 2025