Casa do Finito por Patrícia Wagner

Alan Fontes
Julho 20, 2023

A Casa do Finito, exposição individual de Alan Fontes na Galeria Albuquerque Contemporânea, apresenta a produção recente do artista em plena consonância com a trajetória e a gramática singular estabelecida por ele ao longo dos últimos anos: a imagem pictórica e o espaço real, a relação entre o cinza e uma paleta cromática mínima e pontual, a distinção entre o público e o privado, o que pertence ao indivíduo e à história. A esse conjunto pouco linear de interesses, soma-se uma investigação acerca da natureza da imagem e da capacidade desta de afetar tudo que a cerca, no limite potencial e indeterminado que ela estabelece com o observador.

 

A Casa do Finito é também o nome da instalação que nomeia a mostra. Trata-se da representação de um ambiente de trabalho: um escritório - ou, como a pandemia da Covid-19 consagrou nomear, home-office - típico de uma casa de classe média, cuja mobília foi executada para as dimensões arquitetônicas em que está instalada. Mesmo que não haja livros ou objetos suficientes para ocupar a grande estante, ela está lá, com espaços vazios e preenchidos por uma coletânea de imagens nada casuais. Diante da tela, uma espreguiçadeira atada a ela por fios expande a percepção do observador para além do campo da representação pictórica, criando uma contraposição entre imagens de naturezas distintas. Ao incorporar elementos do mundo em sua obra (num procedimento que alude ao que Robert Rauschenberg fizera nos anos 50, com os Combine paintings), Fontes parece discutir os limites e a liberdade da representação, enfatizando o lugar indeterminado no qual a materialidade da espreguiçadeira estaria situada.

 

Já na organização da tela, a estante é, ao mesmo tempo, figura e fundo para uma coleção pessoal de imagens que se apresentam como signos ou vestígios de uma presença-ausência. Livros, fotos, objetos e recortes de jornal são índices da falta de alguém cujo celular ainda está com a tela acesa e que talvez não tenha percebido que uma garrafa está prestes a cair ao chão. Enquanto signos, tais elementos agem em sentido correlato na relação que estabelecem um com o outro, ou como um circuito de ideias, preferências e gostos pessoais. No âmbito de tais conexões, as três garrafas de coca-cola, em referência à obra de Cildo Meireles – Inserções em Circuitos Ideológicos, de 1970 -, funcionam como um fragmento que ilumina o todo. Elas reforçam o caráter eminentemente político da estrutura de significações tecida em torno dos diversos elementos na estante, conjugando, assim, um imaginário de dúvidas e de incertezas.

 

Como é recorrente na produção do artista, não há figura humana em suas telas. Talvez porque não seja possível no uso que faz do cinza em suas pinturas. Fontes decidiu incorporar essa cor como uma pele em suas obras, como uma forma de apagamento, para anular o real e fazer a pintura forte diante da realidade material e ordinária dos objetos. Na história da arte, o uso do cinza como uma película que se assenta sobre a pintura remonta à Idade Média. A técnica de pintura monocromática em tons de cinza é chamada de grisalha e no uso que o artista faz dela não há nenhuma neutralidade, mas

uma latência que sustenta um tempo imemorial, mítico ou ficcional. Um tempo que não se reduz ao cronos, à sua linearidade, mas um tempo que está fora da história. No âmbito dessa suspensão temporal, promovida pela grisalha, o encontro (ou o confronto) do LP, do celular, das imagens de guerra pelo mundo, de um tornado disruptivo e da diacronia - representada pela obra Perfect Lovers, de Felix Gonzalez-Torres - coadunam com uma temporalidade ruinosa, que imprime na tela um sentimento de permanente melancolia.

 

Na série Livro de Pedra, as relações entre pintura e objeto, imagem e matéria ganham nova espessura. Um conjunto de imagens criadas a partir de arquivos fotográficos de paisagens urbanas encontra no objeto escultórico de concreto seu suporte, cuja forma sugere a de um livro. A multiplicidade imagética, construída pelo artista nos livros em exibição, realça a dimensão pública da arquitetura em composições ora monumentais, ora prosaicas. A arquitetura, como obra de arte cuja percepção pelas massas se dá por meio do uso, diferencia-se da contemplação individualizada, de uma relação privada entre o observador e a obra, o que confere a ela desde sempre a vocação de ser a portadora de uma memória coletiva. Já o livro, objeto que representa o ápice da contemplação individual (aspecto que a arte, em suas variadas formas expressivas, deixou de privilegiar), vive, na atualidade, seu momento de maior ameaça e desprezo. Ao espalhar o pó do tempo, Fontes petrifica as relações internas que as imagens poderiam sugerir para realçar as associações externas e ambivalentes entre o objeto livro e a memória coletiva.

 

Se, por meio das séries anteriores, o artista discute os encadeamentos entre memória individual e memória coletiva, suas relações, porosidades e conflitos, na Série do Finito ele adiciona uma investigação sobre a própria natureza expressiva da imagem em uma construção que mobiliza as noções de memória, montagem e dialética. Nos quatro dípticos, monumentos e edificações em um lado são confrontados com pinturas abstratas de pinceladas expressivas em outro, as quais dominam a quase totalidade da tela. Em algumas delas, como um minúsculo fragmento enxertado, a representação de um tornado sinaliza a desordem do mundo contemporâneo. Encaradas em confronto dialético, as telas dão conta do colapso de um projeto racionalista e utópico de ordenação da vida, com o qual a modernidade flertou em diversos momentos.

 

Como tema, a arquitetura é, para Alan Fontes, portadora de histórias individuais e coletivas. Uma narradora arguta, que dá visibilidade a projetos estéticos, políticos, sociais ou econômicos. No âmbito doméstico, é fonte privilegiada para a compreensão de um repertório simbólico das formas do viver. Mas é na tensão construída entre o público e o privado que, em A Casa do Finito, a “arte do espaço” ocupa, por metonímia, a tarefa de ser o duplo do tempo. E é por meio dessa relação espaço temporal que o artista convida o observador à tarefa sensível de ver em estado de alerta. Apenas sob essa condição as imagens podem resguardar suas memórias e a possibilidade de serem sempre questionadas.

 

Patrícia Wagner

SP, 20 de julho de 2023