Dois temas são recorrentes na obra de Mabe Bethônico: a memória e as pedras. Existem outras questões, evidentemente, mas a “memória das pedras” constitui uma espécie de “camada geológica” fundamental.
As pedras possuem uma memória, sejam as pedras naturais ou aquelas utilizadas em construções. Elas emitem calor depois do pôr do sol, porque armazenaram silenciosamente calor durante todo o dia, para devolvê-lo em seguida, quando o calor ambiente não está mais presente. Elas fazem o mesmo, ainda mais sutilmente, com a vida dos seres humanos que as manejam para seus próprios fins. Se grudarmos nossos ouvidos às pedras de um edifício antigo, nós ainda podemos escutar –somente se realmente quisermos – os murmúrios das gerações que o habitaram. Ao fazermos isso, elas multiplicam a vida, elas anulam o apagamento operado pelo tempo devastador. Daí porque alguns preferem viver em uma casa antiga, além de todas as outras razões que se pode ter para fazê-lo. Essas paredes, essas pedras, são como esponjas que absorveram a vida. A superstição popular que fala das “casas assombradas” com fantasmas regressados do passado é apenas uma variante grosseira disso. Em toda casa digna desse nome habitam espectros do passado. E o que vale para as casas, vale a fortiori para as igrejas, os palácios, os castelos, as prisões, os templos... lugares onde milhares ou milhões de pessoas passaram ao longo dos anos, dos séculos, dos milênios. Mas é mais difícil ouvi-los quando não se está só ou quando a multidão dos que passam é muito grande ou muito heteróclita. Em contrapartida, em uma pequena capela romana na montanha ou em uma casa colonial em Minas Gerais, pode-se perfeitamente escutá-los.
Mas será que as pedras são, no entanto, inocentes? Isso não é tão certo assim. O filósofo Hegel dizia, em sua Fenomenologia do espírito, de 1807, com sua gélida candura habitual: “Inocente, portanto, é só o não agir – como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser de uma criança [é inocente]”*. Não existem senão as pedras que são inocentes – esta afirmação pôde servir como justificativa, com ou sem recurso a Hegel, às práticas terroristas. E talvez Hegel fosse ainda demasiado otimista. De certa maneira, as pedras não são inocentes. Elas o são tampouco como a cana-de-açúcar, o chumbo, a lã ou as ovelhas. Evidentemente, esses materiais não podem nada, eles apenas se curvam a isso que a vontade humana, mais forte que a deles, impõe. Eles sempre acumularam, nolens volens, uma imensa história de sofrimentos. A planta Saccharum officinarum, originária do sudeste asiático, foi a ruína da África e dos africanos. A lã operou, sem saber, devastações também grandes: por diversas vezes, ela foi o elemento desencadeador de uma etapa decisiva do capitalismo. No século XIV, as primeiras formas de produção protocapitalistas, baseadas no assalariado e em uma produção destinada à exportação, concerniam à indústria têxtil, notadamente em Flandres e na Lombardia. Em seguida, foi a sede inextinguível de lã e, então, de terrenos para as ovelhas que pressionou os senhores ingleses a caçar os camponeses de suas terras no processo histórico conhecido como enclosures. Eles conquistaram igualmente a Irlanda, para transformar a ilha em pastagem, mesmo ao preço de que uma parte da população tenha morrido de fome. Daí a famosa afirmação de Thomas More de que as ovelhas tinham comido os homens!
Em seguida, a verdadeira “decolagem” do capitalismo, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, deu-se, uma vez mais, como se sabe, sob o signo da lã e de sua transformação, assim como de outras fibras. Antes de exportar máquinas (como, por exemplo, aquelas que moíam a cana-de-açúcar substituindo os escravos), os ingleses exportavam tecidos para o mundo inteiro. Assim como os africanos deportados para as Américas podiam maldizer a cana-de-açúcar, as crianças inglesas, que na mesma época passavam catorze horas por dia nas usinas infernais, podiam maldizer o algodão e a lã, a seda e o linho. Se cada fibra de lã pudesse contar o que viu durante suas múltiplas metamorfoses…
Somente uma especulação metafísica bastante pausada poderia atribuir uma memória stricto sensu à matéria. Mas, enquanto metáfora, essa atribuição pode nos fazer compreender muito.
Com o benefício do retrospecto, nosso olhar sobre esses materiais e suas elaborações pode mudar. Visitar uma das raras fiações ou lanifícios ainda existentes na Europa pode emocionar. Hoje em dia, paradoxalmente, comunidades fundadas para fugir da civilização industrial e viver no campo são, por vezes, as últimas que ainda se ocupam na Europa da produção e transformação da lã em todas as suas fases, e que tentaram salvar algumas fiações. Por que achamos esses dispositivos antigos tocantes, ainda que se trate da origem do capitalismo industrial e de sua cota de infortúnios? Talvez porque essa indústria guarde ainda um vínculo visível com o artesanato, e também um vínculo com a satisfação de necessidades reais (nesse caso, vestimentas). Mas, sobretudo, porque o know-how nessas atividades não se tornou totalmente abstrato, não pertence completamente às máquinas de funcionamento incompreensível, até mesmo invisível, como é o caso da onipresente indústria da informática. Essas primeiras máquinas aparecem ainda como um prolongamento do corpo humano e podem provocar uma sensação pessoal de potência. Às vezes, sua utilização demandava um know-how muito específico, que acabou dando origem a uma “aristocracia operária”. O último operário, idoso, de uma fiação na França, disse-me que, depois de ter passado uma vida inteira com a imensa maquinaria dessa fiação, construída pela mesma empresa que construía os Rolls Royce, não a conhecia ainda em todos os seus detalhes! As minas antigas também podem despertar grande fascinação quando são visitadas: paira sobre elas uma dimensão mágica, um contato com a matéria primordial que existe para além dos diferentes propósitos – geralmente muito maléficos – que os homens atribuíram a essa atividade. A figura dos anões mineiros, tão presente no folclore e nas mitologias, talvez seja a recordação de uma época em que a mineração não se baseava em uma forma de escravidão.
O desenvolvimento sucessivo da indústria rapidamente cortou o vínculo com as práticas artesanais, para se tornar nada mais que uma exploração que se pretendia “científica” a força de trabalho. Somente um sádico poderia se emocionar – de outra maneira que com raiva e piedade – visitando uma usina com linha de montagem, como aquela de Henry Ford.
As pedras, para voltar a elas, igualmente causaram muito sofrimento. Isto é particularmente evidente no que concerne à mineração. Algumas obras de Mabe Bethônico lidam com o passado e o presente das minas. Outros trabalhos referem-se a pedras preciosas e também à mentalidade dos europeus que chegaram – neste caso – na Colômbia, para catalogá-las e interessaram-se apenas pelas pedras e de maneira alguma pelas condições de sua extração.
A memória das coisas é geralmente também aquela dos homens. Poder-se-iam imaginar exposições sobre a história da cana-de-açúcar ou sobre a extração de ferro que explicam todas as suas consequências? Isso seria seguramente impossível se os organizadores fossem a associação de fabricantes de açúcar ou as companhias de mineração. Sabe-se que as companhias de mineração estão entre as mais potentes do mundo, e as mais nocivas também, sobretudo, mas não somente, na África. O fato de que se fale da necessidade de um “rastreamento dos minerais de sangue” na África, e da impossibilidade de realizá-lo, diz muito a esse respeito.
Robert Musil escreve em O homem sem qualidades que “se, por exemplo, alguém descobrisse que em circunstâncias ainda não observadas as pedras podem falar, não precisaria senão de poucas páginas para descrever e explicar um fenômeno tão revolucionário”** (Guy Debord cita esta frase no seu filme In Girum imus nocte et consumimur igni.) Pode-se fazer as pedras falarem? Quem poderia fazer isso? Em museus como o Museu das Minas e do Metal e Memorial Minas Gerais Vale, dos quais Mabe analisou a ideologia que anima seu funciona mento***, nós não estamos necessariamente diante de um autoelogio direto e descarado das companhias de mineração, em relação a seu passado. É suficiente, para obter um efeito de propaganda, colocar em evidência as proezas tecnológicas, a utilidade do produto, a perfeição dos processos, deixando na sombra as consequências sociais e ecológicas. Mais uma vez, o sistema industrial e o modo de produção capitalista apresentam-se imbricados, e o que, na verdade, foi uma escolha social parece pertencer à ordem neutra das coisas simplesmente úteis, oferecidas pela natureza e transformadas pelo know-how do Homem. Acrescentar, ademais, um lado divertido – jogos – completa o quadro.
Mabe Bethônico responde geralmente com palavras às imagens apresentadas nos museus. Nos museus, a não ser as placas explicativas, que, em geral, poucas pessoas leem, olha-se, vê-se. Por definição, não se pode ver senão o visível. O invisível, não se vê. Mas os museus, como todo discurso, contêm uma parte de invisível, de sombra, de não dito, de inexprimido, de escondido. Alguns artistas, a partir dos trabalhos históricos de Hans Haacke, permitiram ver abaixo de um museu, explicaram o discurso por detrás, mostraram o não mostrado. Isto não acontece amiúde, entretanto. À parte outras razões possíveis, isso poderia dever-se ao fato de que tal questionamento da estrutura dos museus contemporâneos dificilmente pode deixar de lado uma reflexão sobre o papel hipertrófico da imagem em geral na sociedade contemporânea – uma tarefa paradoxal para os artistas, que, por definição, produzem imagens. A época contemporânea produziu uma “palavra humilhada”, como dizia Jacques Ellul, um dos grandes críticos do progresso tecnológico na segunda metade do século XX.
A questão coloca-se, então, uma vez mais: a quem pertence a memória? Aqueles que “fazem” a história têm também o direito de decidir o que a posteridade vai dizer? Permanecer-se-á sempre na situação descrita no célebre poema de Bertold Brecht (1935)?
Perguntas de um operário que lê
Quem construiu Tebas, a de sete portas?
Nos livros, ficam os nomes dos reis.
Os reis arrastaram os blocos de pedra
Babilônia, muitas vezes destruída,
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casa
De Lima auri-radiosa moravam os obreiros?
Para onde foram, na noite em que ficou pronta a Muralha da China,
Os pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos do triunfo. Quem os erigiu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? Bizâncio multicelebrada
Tinha apenas palácios para seus habitantes?
Mesmo na legendária Atlantis,
Na noite em que o mar a sorveu,
Os que se afogavam gritavam por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava pelo menos um cozinheiro consigo?
Felipe da Espanha chorou, quando sua armada
Foi a pique. Ninguém mais teria chorado?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem
Venceu junto?
Por todo canto uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um grande homem.
Quem pagou as despesas?
Histórias de mais.
Perguntas de menos*****.
Felizmente, começou-se, há alguns anos, a falar um pouco disso que o escritor francês Michel Ragon chama de “a memória dos vencidos” ou o historiador italiano Nuto Revelli de “o mundo dos vencidos”.
Geralmente, essa “rememoração” daqueles sobre quem passou a roda da história triunfante faz referência ao filósofo Walter Benjamin, notadamente às suas Teses sobre o conceito de história, redigidas alguns meses antes de sua morte trágica, em 1940. Nestes escritos, que visavam romper com o mito do progresso que prevalecia mesmo no interior do campo revolucionário (onde imperava o materialismo dialético que se pretendia inspirado por Marx), Benjamin escreveu: “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo nunca deixou de vencer”. Ele acusa a historiografia tradicional de entrar em empatia com os vencedores: “em cada momento, os detentores do poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve sempre àqueles que, em cada momento, detêm o poder. Para o materialista histórico não será preciso dizer mais nada. Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos, como é de praxe, são também levados no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural. Eles poderão contar, no materialismo histórico, com um observador distanciado, pois o que ele pode abarcar desse patrimônio cultural provém, na sua globalidade, de uma tradição em que ele não pode pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve a sua existência não apenas ao esforço dos grandes gênios que a criaram, mas também à escravidão anônima dos seus contemporâneos. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. E, do mesmo modo que ele não pode libertar-se da barbárie, assim também não o pode o processo histórico em que ele transitou de um para outro. Por isso, o materialista histórico se afasta quanto pode desse processo de transmissão da tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo”******.
Nas mesmas teses, Benjamin critica fortemente o culto que os socialistas da época dedicavam ao ‘trabalho’. A glorificação moral do trabalho por parte de suas próprias vítimas, a identificação dos trabalhadores com um trabalho alienado e esgotante pode igualmente ser atribuída a um apagamento da memória dos sofrimentos que comporta, finalmente, uma “identificação com o agressor”, como se diz na psicanálise.
Brecht e Benjamin lembram-nos de que, mesmo em relação ao passado, “as ideias dominantes são as ideias das classes dominantes”, como afirmava já o Manifesto comunista de 1848. No entanto, houve – e há – esforços para tirar as vítimas do esquecimento. Historicamente, o primeiro monumento à memória dos vencidos – uma verdadeira revolução na ordem da representação – talvez tenha sido o projeto – não realizado – de Albrecht Dürer de um monumento comemorativo aos camponeses alemães que acabavam de ser vencidos na sua grande revolta de 1525-26.
No seu livro sobre proporções, no qual trabalhava nos últimos anos da sua vida e que foi publicado em 1528, um ano após sua morte, Dürer acrescentou, no último momento, este croqui de uma “coluna para a vitória sobre os camponeses vencidos”, espécie de paródia amarga das colunas da vitória tão típicas da cultura dos senhores. Dürer previa como coroamento, em suas palavras, “um camponês triste perfurado por uma espada”. Ele parece, assim, com a figura tradicional do Cristo da piedade (conhecido também como “Cristo de Assis”): o camponês rebelde vencido seria o sucessor do Cristo, e seu destino seria uma forma contemporânea da Paixão de Cristo.
Atualmente a memória se tornou uma questão política maior e é geralmente apresentada como um instrumento para a emancipação dos “subalternos”. Nesse quadro, encontramos, para citar alguns exemplos bastante diversos, o Monumento à Escravidão, em Nova York, em frente à sede das Nações Unidas; o memorial-museu sobre o massacre cometido pelo Estado mexicano na Praça Tlatelolco (a “Praça das Três Culturas”), em 1968; e, situado em um lugar mais abaixo, o monumento “Porte de Lampedusa – Porte d’Europe”, dedicado aos migrantes que se afogaram ao longo dos anos tentando chegar à ilha italiana de Lampedusa (trata-se de uma iniciativa privada; o monumento foi criado em 2008 pelo escultor Mimmo Paladini), assim como as “Stolpersteine” (pedras-obstáculo), iniciadas pelo artista Gunter Demnig em 1992, na Alemanha: pedras presas nas calçadas com o nome de uma pessoa deportada e assassinada pelos nazistas, ao lado do local onde morava. Mais de 60 mil pedras foram colocadas em vinte países europeus – é o maior “monumento descentralizado” do mundo.
As batalhas em torno da Memória podem ter, contudo, efeitos paradoxais. No Chile, por exemplo, a esquerda sem dúvida ganhou a batalha a respeito da memória: o golpe de Estado de Pinochet é oficialmente condenado, e Allende é um herói nacional. Existe uma rua Allende em frente ao Palácio Presidencial La Moneda, onde ele morreu; não existe rua Pinochet. Uma filha de Allende, Isabel, tornou-se presidente do parlamento chileno: uma vingança simbólica. Um Museu da Memória e dos Direitos Humanos foi inaugurado pela presidente Michelle Bachelet em Santiago, em janeiro de 2009. Todavia, essa vitória é apenas simbólica. No plano econômico e social, o ultraliberalismo instaurado pelo governo Pinochet não é colocado em questão há quase trinta anos, nem mesmo pelos governos “de esquerda”. A vida real do Chile permanece amplamente aquela pretendida pelos golpistas. As apropriações retrospectivas da história podem, então, se revelar pequenas compensações destinadas àqueles que perderam a batalha. Parece que essas batalhas da memória assumem uma importância particular na América Latina, sobretudo em países como o Brasil, o Chile, a Guatemala ou a Colômbia, onde os regimes ditatoriais ou genocidas do passado não foram derrubados por novas ordens políticas eventualmente desejosas de instaurar outra memória coletiva, mas cederam o lugar de sua própria iniciativa às formas mais “democráticas”, que têm dificuldades para cortar toda continuidade com o passado.
Aliás, é mais fácil hoje, para todo mundo, demarcar suas diferenças em relação a formas políticas abertamente ditatoriais e criminais, como o nazismo, o stalinismo ou os regimes militares. Seria muito mais difícil abrir uma batalha pela memória das vítimas do livre mercado, da indústria, do progresso, da repressão em tempos democráticos, das vítimas dos hospitais psiquiátricos, das prisões, dos hospitais, dos seminários, das casas para pobres, dos hospícios, das casas de trabalho, dos orfanatos, das usinas com linhas de montagem, das minas, dos escritórios, das delegacias, dos centros de retenção para migrantes, dos campos de refugiados, em resumo, de todos os locais onde seres humanos têm sofrido sem necessidade real, somente para satisfazer as exigências da organização social em que se encontram.
Como iniciar essa batalha? Poder-se-iam colocar, em certas casas, placas comemorativas deste gênero: “Aqui moraram Jean e Jeanne Dupont, de 1950 a 1987. Jean saía todas as manhãs para trabalhar na usina, repetindo 5 mil vezes por dia, 50 milhões de vezes na sua vida, o mesmo gesto. Jeanne limpava a poeira, lavava roupas e cozinhava sem quase nunca sair. Em troca, eles tinham esta casa de tijolos, um televisor e, enfim, um pequeno carro”. Ou, na entrada de uma escola: “Neste triste edifício, ao longo do século XX, cerca de 10 mil crianças estragaram sua juventude. Quase nenhuma delas aprendeu qualquer coisa”.
Isso produziria, sem dúvida, um efeito satírico, um pouco comparável às placas com os nomes de rua que aparecem no filme Uccellaci e uccellini [Gaviões e passarinhos] de Pier Paolo Pasolini (1966). Tais ruas são dedicadas a personagens como Benito La Lacrima (desempregado), Antonio Mangiapasta (lixeiro), Via Lillo Strappalenzola (fugiu de casa aos doze anos) (esses nomes significam, respectivamente, Benito a Lágrima, Antonio Come-massas, Lillo Rasga-lençóis). Essas placas ficaram famosas na Itália.
Permanecer-se-ia, entretanto, ainda no registro do monumento alternativo, como é o caso dos monumentos aos escravos, às vítimas do nazismo, aos migrantes citados mais acima. Além das boas intenções, indica, então, o perigo da retórica alternativa. A consideração pelas vítimas pode igualmente ser imposta pelas autoridades como parte de uma estratégia política. Na França, fala-se muito do “dever de memória”. Isto pode ter consequências bastante duvidosas. Conheço um local na França, uma rotatória (as quais, aliás, na França, constituem verdadeiras feiras de monumentos e instalações absurdas), onde se espalha, sobre uma encosta, um escrito de pedras: M.E.M.O.I.R.E.[memória]. Pode-se facilmente imaginar que o conselho comunal se sentiu no “dever” de organizar um concurso para um monumento consagrado à memória da Segunda Guerra Mundial e que esta “obra” tenha sido, finalmente, escolhida, na falta de uma melhor ou porque ela era a mais “consensual”.
Podem-se realizar monumentos para o menor morto na mina ou para o escravo açoitado, mas eles acabariam por se juntar aos monumentos para o soldado desconhecido e a suscitar, um pouco depois, a mesma indiferença do público. Aliás, nos países do “socialismo real” não faltavam monumentos à glória dos trabalhadores e eles geralmente superavam os monumentos burgueses em retórica vazia.
Mabe Bethônico experimenta outra via. Para ela, não se trata de integrar na parte visível da cultura oficial elementos que atualmente são invisíveis, mas de abrir discussão sobre o não visível da memória coletiva, a parte oculta e esquecida. Seu Museu dos Assuntos Públicos não é a proposição de uma narrativa alternativa já pronta, mas visa a criação de um espaço – efêmero, por vocação – onde os próprios participantes possam dizer o que deveria ser exposto em um museu, e como. O resgate da “memória dos vencidos” não será obra de alguns gestores que pretendam agir em nome desses vencidos – há um século vemos muitos desses “representantes” – para instalar outras vitrines diante das quais desfilam as classes escolares entediadas e distraídas. O verdadeiro museu, para Mabe, são as próprias pessoas que refletem o que elas gostariam de expor. Tudo está aberto à discussão, a começar pelas classificações dos minerais. Porque, é preciso lembrar, nem mesmo as pedras são inocentes.
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*Hegel, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992, vol. II, p. 24.
** Musil, Robert. O homem sem qualidades. Trad. Bia Lessa, Lya Luft, Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 194.
*** N.E. “Patrimônio Ideológico”, Mabe Bethônico e Maíra Fonte Boa,
Revista Valise, v. 1, n. 2, 2011.
**** In: Brecht, Bertolt. Breve antologia de Brecht. Trad. de Haroldo de Campos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, abril/junho de 1966, nº 9-10, apud Costa, W. C. Três Brechts. Fragmentos. Florianópolis, julho/dezembro de 2003, nº 25, pp. 69-76. Outras traduções disponíveis: Brecht, Bertolt. Antologia poética. Trad. Edmundo Moniz. São Paulo: Elo, 1982, p. 31; Brecht, Bertolt. Poemas (1913-1956). Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 167.
*****Benjamin, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2012, p. 12-13.