Se devêssemos elencar um conceito em torno do qual pode ser articulada a obra de Mabe Bethônico, a primeira opção que nos viria à mente seria provavelmente o conceito de museu. A noção está presente em quase todos os seus trabalhos, do Módulo itinerante do Museu do Sabão, de 2003, ao Museu dos Assuntos Públicos, de 2013; e a plataforma virtual que agrupa informações sobre um conjunto de sua obra recebe o nome de museumuseu. Mas essa evidenciação da instituição museal pelo emprego constante de seu nome, o significante “museu”, esconde talvez aquela que, a meu ver, é a verdadeira força motriz do trabalho de Mabe Bethônico: o interesse pelo arquivo. Lembremos que, no início dos anos 2000, Hal Foster já havia falado de uma “pulsão de arquivo” como tendência característica da arte do novo século. Buscando definir as novas formas de ação dos artistas contemporâneos, depois do artista-etnógrafo, o crítico norte-americano tratou, em An Archival Impulse (2004), do artista-arquivista que, diante do colapso das totalidades aparentes que estruturavam a ordem simbólica da modernidade, buscaria construir novas formas de relações significativas através da apropriação de elementos do passado. Esse movimento é conscientemente proposto na prática de Mabe Bethônico. Vemos, em toda a sua obra, um esforço constante para construir relações significativas a partir da acumulação de fragmentos. É a partir dessa operação arquivística que ela se volta às instituições da arte, desviando o discurso institucional para além de seu quadro habitual, originando contranarrativas e criando novos significados para os lugares de memória*.
Examinemos como isso se desenvolveu progressivamente em seu trabalho. Em 1996, Mabe inventou um personagem ao qual chamou de Colecionador, e que colecionava notadamente recortes de jornais, organizando-os em quatro categorias: “Destruição”, “Corrosão”, “Construção” e “Flores”. Essas categorias podem parecer aleatórias, mas a partir delas declinava-se um minucioso sistema de classificação. É, portanto, desde o início que Mabe Bethônico se interessa por essas duas operações típicas do arquivista, a acumulação e a classificação, aplicando-as primeiramente aos textos e imagens, para passar em seguida ao campo dos objetos. Com o Módulo itinerante do Museu do Sabão**, ela cria um museu fictício que está, na verdade, contido inteiramente em um arquivo. As categorias que estruturam esse arquivo emprestam seu nome a seções típicas de um museu: “novas aquisições”, “coleção permanente”, “exposições temporárias”. Mas se os museus de arte podem ser corretamente considerados como arquivos da arte, sua particularidade é que, contrariamente a outros tipos de arquivo, os museus de arte devem propor incessantemente sua atualização – o que acontece por meio da prática que lhes é própria: a exposição. À primeira vista, é à função arquivística dos museus, e não à sua dimensão expositiva, que parecem se endereçar as obras da artista.
Quando foi convidada a participar da Bienal de São Paulo em 2006, Mabe quis expor justamente os arquivos da instituição. Mas não se tratava apenas de expor materiais extraídos desses arquivos, de forma a retirar desses objetos sua função mnemônica, estetizando-os. Pelo contrário: expondo documentos classificatórios, tratava-se de problematizar os arquivos e as práticas pelas quais as instituições selecionam seus objetos e constroem sua memória. Tratava-se, sobretudo, de tornar público aquilo que até então era de conhecimento apenas dos membros da Fundação e de um restrito grupo de estudiosos. Uma planta seccionada do edifício revelava aos visitantes a dimensão impressionante do arquivo Wanda Svevo, que ocupa uma parte significativa do prédio da Bienal. Uma campanha publicitária concebida pela artista convidava finalmente os visitantes para que descobrissem por conta própria esses arquivos. Longe de mera intervenção pontual, a operação teve grande impacto, tornando a instituição consciente de suas deficiências internas e impulsionando um trabalho de reforma, com a adequação de sua infraestrutura para documentos e recepção do público. Particularmente importante foi o trabalho de coleta de perguntas feitas pelo público por telefone aos atendentes do arquivo, e pelos visitantes da exposição bienal. Esse processo foi prolongado na sucessiva Bienal de São Paulo, em 2008, quando os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen propuseram por tema uma discussão sobre a própria instituição. A artista interveio mais uma vez, questionando agora as relações da Fundação com o Parque Ibirapuera, espaço no qual se insere. Além de se servir novamente de documentos do Arquivo Wanda Svevo, a artista procurou romper o isolamento da Bienal, dialogando com funcionários de outras instituições que habitam o parque.
Percebemos, assim, que procedimentos que outrora constituíram instrumentos de enfrentamento – aos tempos da arte de crítica institucional dos anos 1970/1980 – parecem ter se tornado prioritariamente instrumentos de conhecimento, podendo auxiliar no remodelamento das instituições. É o que encontramos também em outros trabalhos de Mabe Bethônico, como Telling Histories (2003), no qual a construção de diferentes narrativas sobre o passado e o presente de uma instituição de arte – o Kunstverein München – passou inicialmente por um trabalho de organização de seus arquivos, a artista encarregando-se da constituição de coleções, da criação de um banco de dados e de interfaces de acesso para consulta.
Algo distinto foi proposto no trabalho que Mabe Bethônico realizou entre as duas bienais de São Paulo já mencionadas, Caracteres Geológicos Peculiares, apresentado em Medellín, em 2007. Ocupando o espaço da Biblioteca do Museu de Antioquia, a artista trouxe aos olhos do público elementos que não costumamos ver, mas que são essenciais ao funcionamento de toda instituição que se presta à conservação. Caixas, latas, etiquetas de sinalização, diferentes materiais de acondicionamento encontrados nos depósitos do Museu de Mineralogia Tulio Ospina da Universidade Nacional da Colômbia foram expostos ao público. Esse movimento de trazer à luz dispositivos fundamentais que normalmente permanecem fora da percepção do público – e que encontramos também em Área restrita (2009), trabalho in situ feito para o Museu de Arte Moderna de São Paulo – nos dá uma ótima pista para compreender a obra de Mabe Bethônico. Pois, se quando propõe fazer museus, a artista parece fazer, na verdade, arquivos– ou ainda, se parece chamar de museu o que é, na verdade, arquivo – isso não se dá sem razão. Quando pensamos nos museus artísticos, a prática da exposição é a primeira que nos vem à mente. Apenas raramente pensamos na função arquivística dessa instituição. Ao fazer arquivos e chamá-los de museus, Mabe destaca o ponto de contato entre essas duas funções. Se, por um lado, a artista aborda precisamente a face menos visível das instituições museais, ao mesmo tempo ela faz com que o arquivo saia de sua habitual invisibilidade. É necessário, então, que o arquivo invada o espaço expositivo, fazendo transbordar para o presente elementos de passado. Desse duplo movimento entre o arquivo e o museu, resulta um esforço para tornar público e atual o trabalho de construção da memória social que, tido normalmente por empreitada de especialistas, permanece inacessível ao olhar da maioria. Porém, como demonstra um personagem anódino como o do colecionador, a seleção de vestígios do passado pode ser uma atividade cotidiana comum a todos. Mais que isso, as instituições podem ainda falhar nessa tarefa, o que traz à tona a necessidade de um campo ampliado de construção da memória.
Foi o que notou a artista quando, ao explorar os arquivos da Organização Internacional do Trabalho, constatou que a mineração brasileira – uma das principais atividades econômicas do país, no passado e no presente – estava ausente dos registros fotográficos da instituição. Iniciou, então, o projeto Invisibilidade mineral, que consistia, a princípio, em produzir fotografias da mineração destinadas a serem doadas aos arquivos da OIT. Dessa forma, a artista visava intervir diretamente nos arquivos de uma importante instituição internacional estranha ao mundo da arte. Foi ao longo desse trabalho que nasceu um novo projeto. Durante sua visita ao escritório do Ministério do Trabalho, Mabe Bethônico descobriu arquivos fotográficos inéditos e efêmeros. Os funcionários encarregados da fiscalização das condições de trabalho possuíam milhares de fotos tiradas nas minas. Essas fotografias revelavam um olhar muito específico– e, portanto, distinto do olhar da artista. Temporariamente salvaguardadas nos discos rígidos dos computadores dos fiscais, essas fotos eram utilizadas na escritura de relatórios sobre as condições de trabalho, mas não eram posteriormente conservadas pela instituição. A artista decidiu, então, criar arquivos para conservá-las, e acabou elaborando, a partir daí, um novo museu – colocando-as, assim, em diálogo com outras coleções e trabalhos acumulados em anos de estudos sobre a questão da mineração. Esse museu recebeu o nome de Museu dos Assuntos Públicos. Como o nome parece indicar, o interesse de Mabe Bethônico não estava ligado a nenhum critério estético, como se houvesse descoberto um talento artístico escondido em um departamento burocrático. Tampouco se limitava a artista à denúncia repisada das precárias condições de trabalho nas minas. Sua intenção era mais ampla. Tratava-se de interrogar a noção mesma de esfera pública. A mineração é a principal atividade econômica da região, afetando diretamente o cotidiano de seus habitantes. Como é possível que se saiba tão pouco sobre suas condições de trabalho? Como é possível que os documentos produzidos sobre essa atividade não sejam tornados públicos, e muitas vezes nem mesmo conservados?
Desse encontro entre o museu e o arquivo, entre a necessidade de conservação e a necessidade de exposição, emerge enfim outra noção de público. É claro que o público deve ser primeiramente oposto ao privado e à privatização generalizada que avançou com o neoliberalismo nas últimas décadas. Todavia, isso não deve significar uma simples e corriqueira tomada de posição em prol do Estado. A noção de público que emerge desse projeto dificilmente poderia ser confundida com a esfera estatal. Afinal, as fotografias foram produzidas pelos fiscais do Ministério do Trabalho, um órgão do Estado e, todavia, não eram ainda públicas. A noção de público a qual se alude aqui, ao mesmo tempo em que se opõe à privatização neoliberal, vai também além do Estado. Ambas as esferas são percebidas como opacas. O conceito de público que este museu coloca em cena visa, portanto, incorporar tudo aquilo que é rechaçado pelos poderes econômicos e estatais, mas que permanece próximo da vida cotidiana.
Em seu célebre texto Mal d’Archive (1995), Jacques Derrida encontrara, na origem grega do termo, arkhè, os implícitos sentidos nomológicos e topológicos do arquivo. Vinculado ao arconte, o arquivo seria fruto do poder de ordenamento dos magistrados e instituído em seu domicílio. A produção de artistas como Mabe Bethônico parece romper justamente com as características fundantes do arquivo. O artista suplanta as instituições nas funções do arconte, tornando-se o novo guardião dos documentos, e instituindo sua nova ordem. É lícito afirmar que, ao fazê-lo, o artista aponta para uma comunalização do arquivo, uma socialização mais ampla das funções de conservação e apresentação dos vestígios do passado. Esse gesto tem uma dimensão política profunda. Se a sociedade contemporânea pode ser caracterizada como uma “sociedade do espetáculo” – segundo fórmula cunhada por Guy Debord, ele mesmo um cineasta de arquivo – isso se deve ao fosso crescente que existe entre a experiência vivida e a esfera da representação. Nesse contexto, revelar meios e estratégias para representar e ressignificar o passado pode ser visto como um gesto antiespetacular por excelência, uma tentativa de reconciliar a experiência com a representação, em frontal ruptura com a lógica alienante da sociedade contemporânea.
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* Retomo aqui, em versão revista e ampliada, texto da conferência que apresentei no Centro Georges Pompidou de Paris, em 4 de junho de 2016, no âmbito da exposição Museum On/Off.
** N.E. Esse trabalho não é apresentado neste livro. Ele pode ser consultado no site da artista: https://www.ufmg.br/museumuseu/museudosabao/.