A exposição “Invento o Mar”, de Laura Belém, encontra ancoragem e deriva na música do Clube da Esquina. Depois de um período morando em São Paulo, a artista retorna ao “mar de montanhas” de Belo Horizonte, sua cidade natal. Na volta e no contato com o entorno e tudo que há como bioma e presença, ela se abre a uma dimensão que já perseguia em seu trabalho e, agora, alcança lugar decisivo com experiências e coreografias com a paisagem, que descentram o humano e acolhem cosmologias que não apartam a cultura da natureza.
“A Queda do Céu”, livro de David Kopenawa e Bruce Albert, revela que muitas das atuais doenças decorrem da exploração e destruição do ecossistema. Laura Belém captura a ética em jogo ao voltar o olhar ao céu, ao vôo das aves, ao “dançar” com outros viventes da biosfera e escutar as mensagens que podem nos direcionar à cura. O mar inventado pela artista nos convida a mergulhar em uma poética que contempla o mistério das coisas – as plantas, as montanhas, a terra – e escapar do antropocentrismo viciado que anula a alteridade da natureza. Outros tempos e processos abrigam folhas, minério, barro, pedras, papel, madeira, ouro e elementos formais que, juntos, abrigam ambivalências e enigmas.
O retorno de Laura Belém marca uma espécie de “Elogio da Mão”, título de um livro em que Henri Focillon descreve a mão como “uma planície abaulada, percorrida por veias e artérias, arredondada nas bordas, une o punho aos dedos, ao mesmo tempo que lhes encobre a estrutura oculta”. O historiador da arte francês localiza a criação na vida ativa da mão, “suscetível de se distender e de se endurecer, assim como é capaz de se moldar ao objeto”. E é a própria artista quem revela a dimensão do gesto, da centralidade da presença das mãos: “O trabalho tornou-se menos projetista e mais corporal e experimental, mas não menos instalativo e espacial. O diálogo com a paisagem, a natureza e a matéria, tornou-se também mais evidente”.
Seu trabalho engloba linguagens como instalação e escultura, transita por áudio, fotografia e desenho. Com grande produção inédita, a exposição “Invento o Mar” se delineia como uma investigação nos campos da escultura e do desenho expandido, estendendo-se à poesia visual e arte sonora. Trata-se de uma verdadeira travessia que nos convida a também inventar um cais, outro corpo, outro ethos que refunde a relação com a natureza, o mundo e as espécies. Não por acaso, sua “invenção” convoca outro bioma, além das montanhas mineiras: o mar, a pura alteridade. E é disto que se trata: uma relação com a alteridade que nos coloca no lugar não apenas da familiaridade, mas da estranheza.
Uma dimensão instalativa percorre a poética da exposição, forjada a partir de uma nova relação espacial e corporal que cria deslocamentos com uma espécie de quebra da arquitetura. Essa metamorfose pessoal – e também coletiva – que os trabalhos evocam, nos leva a imaginar uma política que possa resistir ao sistema de exploração dos corpos, da natureza e do imaginário. Ao ocupar um lugar de fronteira, a mostra pede um exercício de presença que deixe as faculdades da imaginação se exercitarem livremente, como no trabalho “Vôo, rota de fuga”, em que materiais se misturam – cobertor, samambaia, minério de ferro, fio de cobre – tensionando formas e presenças dos elementos, com escapes como as placas que avisam dos perigos das barragens e como as soletradas pelos pássaros, a descortinar alguma utopia.
A presença dos pássaros é também evocada no ninho que guarda a mensagem precisa que lembra uma monocultura colonial que, por sua vez, extermina a diversidade e torna homogêneas as paisagens. A exposição pode ainda ser entendida como um cortejo – palavra que também nomeia uma obra – que captura a dimensão, tão sagrada quanto profana, do que se coloca em cena. Impossível não pensar em “Totem-objeto”, “Totem-planta” e “Totem-ave”, desenhos tipográficos que criam uma síntese da sacralidade, agora condensada na relação com a natureza. Aqui reverbera “Amor de índio”, canção de Beto Guedes – “tudo que move é sagrado” – evocando a topografia irregular de Minas Gerais, de planos altos e baixos que, com certa dramaticidade, rumam ao desconhecido.
Uma coreografia se estende por toda a exposição. Na instalação “Correnteza” – obra que lida com a linguagem da cerâmica, a dimensão do gesto e a presença incontornável das mãos – temos o contraste de cores em peças tubulares, com cerâmica preta e argila branca em pó. O tátil, com sua potência de rastro e vestígio, agenciando escrita e movimento, corpo e signo. Em “Mapa Mundi” a artista imprime algo do corpo na paisagem do papel – sua digital em guache preto – misturando o mais pessoal ao mapa do mundo, desenhando a memória particular junto à memória coletiva possível.
Laura Belém mergulha no mar que inventa para si e nos convida ao mergulho na alteridade vegetal, animal e mineral. Com as mãos, conclama que enxerguemos, também com os dedos, essa matéria tátil que se diluiu em cotidianos mediados por uma sucessão de imagens vazias do digital. É um exercício próximo do proposto por Emanuele Coccia que, no belíssimo ensaio “A Vida das Plantas”, revela uma forma de conhecer o mundo: pelas plantas, com sua superfície de sensações e folhas, por flores como forças cósmicas e a terra, pelas raízes. Uma forma de escrita e estado de presença e temporalidade, como o que se delineia em “Orvalho”, com gemas de vidro em suspensão em tábuas de madeira. A presença de algo etéreo e de uma matéria que sobrevive em seu peso e história, como madeira de demolição, é o jogo que atravessa a exposição: o orvalho se transmuta em lágrimas que fazem a ponte entre o visível e o invisível. O familiar e o desconhecido na presença silenciosa das coisas.
Junto à uma rigorosa pesquisa formal, a artista elege os aspectos poético e musical como elementos de diálogo central, o que pode ser observado na fotografia “Travessia” em que, nos relembrando de nossa humanidade, uma casca de palmeira – um corpo-paisagem, um corpo-planta – que parece um barco, flutua na água. Como um corpo-mineral, esse sentimento se encontra pulsante na música de Milton Nascimento: “Solto a voz nas estradas, já não quero parar. Meu caminho é de pedra, como posso sonhar”.
Sonho feito de brisa, sonho mineral, sonho de pedra, de folha, de água, de árvore, de barro. Sonho que enfrenta a nudez do mundo e seus horrores: a mineração, o agronegócio predatório, o colapso climático, a degradação dos laços de vida e da natureza. Um sonho que enfrenta o tropeço na pedra. Não há como não lembrar a desaparição do Pico do Cauê, que podia ser visto da varanda da casa da infância de Carlos Drummond de Andrade, citado no poema “A montanha pulverizada”. No lugar do pico, hoje há uma cratera. Em “Montanha Espelhada”, trabalho de Laura Belém e Daniel Antônio, o neon revela um jogo de inversão, o abismo e o fundo das coisas e, em “Poço”, essa mistura de certa presença industrial aparece no aro de neon envolto em cangas de minério de ferro.
Já em “Moeda de troca”, o ouro que tinge as folhas do cerrado traz a marca da mineração que reluz e, também, destrói. Pintar as folhas de dourado é um gesto crítico, como foi o de Cildo Meireles na instalação “Missão/Missões – como construir uma catedral”, de 1987, obra composta por ossos, hóstias e moedas, com teatralidade barroca e brilho que criaram a sensação de lugar sagrado, retratando as missões jesuíticas em que a conversão religiosa era um trabalho violento de extinção dos indígenas e sua cultura. Laura Belém opera giros discursivos, jogando com formas e presenças portadoras de ambiguidade: ouro que brilha, fruto da ferida exploratória da mineração, e aponta alguma beleza que pode ser ainda inventada de ruínas.
A ambiguidade e presença de elementos etéreos estão também em “Manto”, instalação com papel japonês que parece flutuar e colocar tudo em suspensão – como as igrejinhas entre as nuvens de Guignard – e, perfurado por espadas de São Jorge, revela mistérios insondáveis e faz lembrar do certo silêncio evocado pela poeta Adriana Versiani dos Anjos que, em “Lamento”, murmura: “aconteceu das lágrimas virarem cristal / assim que tocavam o chão”.
O chão é o solo das utopias, pois a natureza que Laura Belém aqui convoca não é somente a pré-história imemorial da cultura, é também o futuro ainda não realizado. Laura nos leva a caminhar por esse chão, pelos ecossistemas de convivência e a pensar outras cosmologias e cosmogonias, e o faz através de uma peça sonora ou da dança infinita de “Bailarina”, feita de tronco e envolvida por sementes de jacarandá, no espaço mitólogico reinventado por um tempo outro, assim descrito, como uma sentença exata, por Ailton Krenak: o futuro é ancestral. A arte nos lembra que devemos estar à altura do que nos acontece.
Bianca Coutinho Dias