“ (…) do fundo do opaco eu escrevo, reconstruindo o mapa de um soalheiro que nada mais é que um inverifcável axioma para os cálculos da memória, o lugar geométrico do eu, de um mim mesmo do qual o mim mesmo necessita para se saber mim mesmo, o eu que só serve para que o mundo receba continuadamente notícias da existência do mundo, um engenho de que o mundo dispõe para saber se existe.” Ítalo Calvino . Do Opaco in O Caminho de San Giovanni. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Um caderno de notas, um GPS e uma câmera fotográfica são os três elementos fundamentais para o artista Marcelo Moscheta – , com quem bati um papo no último domingo (07) – em seus deslocamentos ao redor do mundo. Geralmente passando por lugares inóspitos, o paranaense já embarcou para expedições solitárias e imersivas da fronteira Brasil-Uruguai ao Ártico, do deserto do Atacama às margens do rio Tietê. Moscheta busca estar em lugares pouco convidativos que provoquem algum desconforto, mas que apontem para algum instinto de sobrevivência, mergulhando em uma viagem existencial na paisagem, longe dos ruídos e imerso nas entranhas do tempo. “O que é existir em comparação com esse mundo?” Pergunta-me ele.
Não sei… Mas para ele a existência passa por ter em seus trabalhos essas raízes de explorador, na busca de contato intenso com sua alma e seu espírito. “Aislado” em cada viagem, sem se desligar do mundo. “Tem uma questão de documentar a experiência para ela ser melhor pensada e decantada no espaço do ateliê. “Essas viagens são muito para criar um diário, me alimentar da história de superação do homem e o ambiente, da geologia e da topografia, numa tentativa de entendimento daquilo tudo. Projetinhos científicos ao lado dos artísticos, caminhando junto nessa maneira de tentar traduzir a experiência homem-mundo. Na ciência tem um conhecimento ilusório “preciso” do espaço. “Esse conhecimento o mundo de uma forma demasiada assertiva é uma ideia e não a realidade”.
Os GPS (desde 2007 Moscheta é voluntariamente rastreado por eles) podem, de alguma forma, trazer para seu trabalho um deslocamento preciso, com seu corpo funcionando como um lápis nas trajetórias de cada território, na representação do espaço, reforçando essas camadas de entendimento racional e sensível do mundo.
“mapas são anotações gráficas de experiências a serem lembradas. Terra não mapeada é terra não possuída.” Lucy Lippard, “Overlay”, The New Press, 1983.
Das viagens, dos pedaços da Terra habitados temporariamente e explorados com a dilatação do tempo e do sentir, Moscheta carrega uma pedra, um galho, uma planta, uma poeira. Todos esses elementos-souvenirs do que foi o espaço vivido que ele leva de uma viagem até seu ateliê em Campinas são fontes inesgotáveis de inspiração.
Raramente suas obras são executadas “in loco”. Passam pelo processo de maturação necessária para tornarem-se trabalhos e saírem do seu caderninho de desenhos e transmutarem. Às vezes elas vêm direcionadas para a participação de uma obra, outras vezes como um auxílio de resgate da memória, como um gatilho criativo, ou apenas ali acumuladas e catalogadas. Sim, pois sempre que chega de algum destino, ele etiqueta, cataloga e armazena todas as peças como em um arquivo da Terra, um museu do planeta.
Carregar pedaços do mundo é apreender os territórios, interligando-os no ateliê, criando cartografias em cada pedaço de seu espaço criativo. Os olhos carregam as emoções, as cores e texturas. A matéria é sólida. Real. Presente. Palpável e incentiva e resgata o que já foi esquecido e o que pode ser criado. Mover elementos naturais, cruzando fronteiras, sem limites, é permitir novos significados aos elementos e a quem está ao redor.
Como uma forma de catalogar alguns conceitos, perguntei ao artista sobre algumas palavras chaves em seu trabalho:
Horizonte: a possibilidade do encontro, a linha que equilibra o mundo.
Território: campo da ação, lugar de conflitos infinitos e particulares.
Terra: é o pertencimento, viemos do pó e a ele voltaremos.
Fronteira: é o limite da identidade.
Filho de um botânico e uma artesã, ligar informações científicas aos seus trabalhos é algo recorrente. Há a busca em decompor a paisagem de certa forma, ao agarrar esses elementos e reclassifica-los até o limite dessa poética.
Assim como a natureza, seus processos passam por ciclos com começo, meio e fim. Explorar, desbravar, mergulhar, recriar e enterrar. “Quem determina o fim dos ciclos não sou eu, são elas, as pedras, os elementos. Tem uma certa ideia de esgotamento da poética do objeto.”
São fronteiras territoriais e pessoais que ele ultrapassa com cada projeto. Desde sempre, ainda em Maringá, onde morava com os pais, sentia que precisava afrouxar as bordas desse território-casa, num querer atravessar o mundo, a história, a geografia. De fato, seus passos atravessaram fronteiras, paisagens, histórias e geografias, como ele sempre quis, com tudo registrado pelo GPS (ou Zuckerberg) e sabe-se lá por quem mais.
Moscheta tateia a paisagem, aterra no solo de cada viagem, apropriando-se de tudo ao seu redor, respeitando o tempo necessário para apurar o olhar e o sentir, eliminando a ansiedade e as imagens preestabelecidas antes da experiência.
A experiência estava, quase sempre, no corpo ausente de Marcelo. Mas isso vem mudando e sendo questionado em seus trabalhos, desde 2015, quando fez uma residência na Itália e agiu direto e manualmente no objeto para transformá-lo na obra. Moschetta pegou as pedras das encostas de um rio onde supostamente aconteceu uma batalha em 208 a.C., batendo uma contra a outra e, com os fragmentos, criou os atos I-V da série Trauma. Nesse processo, seu corpo age na paisagem. O corte seco nas pedras, a aceleração, a quebra, o rompimento, o trauma, só foi possível com o artista como agente fundamental dessa transformação. O que é o corpo no trabalho? A ação do homem em um elemento da natureza faz deste arte, artefato. Moscheta, que em uma espécie de performance filma todo seu processo, pergunta-se se o registro não seria parte essencial da obra. Certamente.
Ele, que sempre habitou um planeta ainda não existente ou uma Terra que colapsou, começa a pensar em que corpo é esse que percorre e habita a paisagem. Antes, parecia um corpo muito abstrato, generalizado. Agora existe a vontade de entrar mais na ideia da paisagem habitada por outros seres, por humanidade, por gente. Onde começa a Terra e onde termina o Eu? (Planalto Central, Ano Zero)
O sólido e os caminhos inventados no deserto ou no Polo Norte, onde perder-se é parte da experiência, vão dando espaço para o fluido, para o caminho já traçado das águas dos rios. Diferente da errância e do nomadismo permanente das mil possibilidades de percorrer a terra, o rio já existe, não há como criar um novo pontilhar. Esse caminho é anterior a nossa existência. Ele é um outro ser.
texto para o blog entretempos. Folha de São Paulo