A natureza em que somos por Daniel Barretto

Marcelo Moscheta
Abril 17, 2021
“A paisagem é atormentada pelo infinito”
Jean-Marc Besse, Ver a terra, 2006.

Francesco Petrarca inaugura com o seu breve relato epistolar sobre a subida do Monte Ventoux a literatura estética da paisagem. Do cume, poderia observar a vastidão das regiões que a visão pudesse alcançar. Tal como já foi dito, há algo de profundamente moderno neste relato que tem a ver com uma qualidade naturalista no olhar de Petrarca. Se os parâmetros do autor para dar sentido a esse olhar guardam semelhança com uma tradição de ver o mundo dentro da ordem divina, a necessidade de olhá-lo de modo franco, a pôr a experiência do corpo em evidência, é motivo de uma angústia que denota o abalo dessa tradição. De qualquer modo, é interessante que a vivência sensível da paisagem conduza a uma situação de pensamento. Da carta do poeta do século XIV italiano, recupero alguns pontos que ajudam a orientar o olhar sobre características da obra de Marcelo Moscheta na sua relação com a paisagem.

A tomada de consciência de algo inexpugnável na natureza, uma imensidão que derrama a possibilidade do sensível e só pode ser pressentida como uma relação com o infinito, é um desses pontos. E essa consciência reconduz para dentro uma reflexão sobre o fora, a delimitar uma distância que será sempre intransponível, mas que nos trabalhos de Moscheta é equalizada no movimento constante entre o pertencimento à natureza e a sua observação. Petrarca, diante da oposição entre interior e exterior, procura em Santo Agostinho uma solução para o impasse de suas angústias sobre a vontade de conhecer ao recuar da escolha pela visão do mundo e reconhecer o valor da verdade na alma, na grandeza da interioridade. Em Mosqueta, ocupar o espaço e refletir sobre a ocupação são ações contínuas, ser é mover-se entre o sensível e o inteligível.

Seu trabalho recupera algo desse fazer que é a criação da paisagem, de um espaço, de um lugar que, enquanto recorte do real, é tanto uma forma de olhar para esse real como uma forma de olhar para si mesmo, divisão essencial que a paisagem põe e aprofunda da nossa fissura enquanto natureza e cultura. Se essa fissura e a interrogação que ela provoca é inevitável à paisagem, na obra de Moscheta há uma constante procura por meios de tanto lidar com a fissura, como de transformá-la em algo que, no panorama fluido e experimental da arte contemporânea, se assemelha a uma vontade paisagística. Trata-se menos, talvez, de dizer paisagem, mas de explorar as angústias, as contradições, de problematizar o exercício de estar diante da natureza, sem a ingenuidade de recusar o olhar instrumentalizado da cultura, do qual precisa para pensar a ação humana sobre a natureza e os processos da arte. Contudo, se não há ingenuidade, tampouco a consciência da distância o impede de buscar, nas próprias trincas da fissura, no seu desenho sempre tenso, o caminho de volta para um deslumbramento, um assombro com aquilo a que pertencemos, sem podermos abarcar ou bem nomear.

A propósito da obra “Rejeito”, a tensão pode ser sentida na aparência de leveza da folhagem seca, de camada revolta e amortecedora do orgânico e num caráter entrópico ou cíclico que, no corpo da obra, contrastam com a matéria escultórica. Os indícios ganham outros contornos no peso pressentido da folhagem revelada em argila, na organização geométrica que lembra a obra de Carl Andre e na concentração de energia que sugere uma permanência.

É compreensível que alguns aspectos da sua investigação estejam ligados ao sentido de limites territoriais que, por vezes, pode tomar como referência separações estabelecidas naturalmente, como os rios. Seus trabalhos sobre fronteiras geográficas, políticas, poderiam ser lidas como duplos desse outro enfrentamento, mais sutil, entre a descontinuidade do indivíduo descoberto, que em sua consciência não é mais que um recorte, uma moldura, e a continuidade da vida que só pode ser percebida no tempo, que nos atravessa não como uma linha, mas como infinitas ramificações e cruzamentos, uma erótica fluvial. O seu deslocamento pela terra, o movimento, também cria linhas imaginárias e reais, na rasura do andar no solo e na projeção de percursos de viagens. Algo indefinível dessa prática não deixa de ser um ato contínuo do desenho que, para ser, exige quase sempre a transformação de ponto em linha, o atrito.

A pintura “Toda pedra é uma pequena montanha” sublinha esse aspecto de tempo, fronteiras invisíveis e transformação. Em parte, pelo movimento da matéria que marca as características geográficas da região, no seu ser pedra, algo imutável, em seus processos cíclicos que não são capazes de corromper algo de sua essência. Por outro lado, podemos supor a própria pedra, enquanto acidente geográfico, parte dessas fronteiras fluidas, como a superfície dos trânsitos humanos e da sua proteção, que sentimos na crueza da cal virgem que escreve em língua mirandesa.

Esse modo de Moscheta lidar com a natureza escapa à ordem da cultura do sujeito moderno, classificador, inventariante, arqueólogo, que aparece reinventado na sua obra.


revista Umbigo  . #76  .   2021