Mero Espaço por Luiz Camillo Osorio

Waltercio Caldas
Maio 20, 2024

Não há melancolia, há desconcerto, nas obras recentes de Waltercio Caldas. Uma paleta de cores difusas, tonais, ao mesmo tempo sombrias e quentes desdobram-se nas pinturas/objetos. Assim como os espaços criados pelas esculturas são uma luta constante de escalas e movimentos. Nada se adequa ao que rege nossa orientação convencional. Ora o olhar é tragado pela insinuação de profundidade, ora é expelido pelos reflexos da superfície, ora é puxado para fora pelo movimento das linhas, ora concentra-se nas relações de força que tendem para o centro da peça. A instabilidade topológica perpassa sua poética.

Vivemos tempos desafiadores para a arte e para a política. De um lado, a assertividade enunciativa típica do mundo das redes sociais, inibe qualquer reflexividade. De outro, a multiplicação de vozes e narrativas deslocam as posições constituídas e obrigam as subjetividades a repensarem suas formas de orientação. Tudo é para ontem e somos tragados pelo tempo. É cada vez mais urgente deslocarmos os modos como habitamos o presente.

Este embate contra a aceleração e as certezas é, indiscutivelmente, uma das dimensões políticas da arte. Mas isso não acontece sem atrito, sem desatarmos os elos que ligam as formas de ver aos regimes de identificação que acabam por reduzir o visível ao sabido. Usando aqui uma terminologia kantiana fora de moda, o que cabe à arte é recuperar a dimensão produtiva da imaginação, ou seja, trabalhar o tempo da percepção, a latência do não sabido que pulsa aí. Isso implica recusar a apoteose da representação enquanto transparência comunicativa, assumir a opacidade como uma defesa da latência do sentido no tempo.

Em conversas recentes com Waltercio Caldas em seu ateliê, uma questão que ele retomava insistentemente era o incômodo em reduzir a experiência da arte – escultura, desenho ou pintura – à dimensão imagética. Como trazer de volta a tatilidade, a presença física e multissensorial do mundo da vida. Como retomar o cuidado frente à presença das coisas, como disponibilizar o tempo necessário para reparar, condensar, reter, associar, rever, não ver, passar a ver. Como manter o desamparo inerente à experiência do desconhecido, do vazio, do intervalo. Este exercício é parte da equação poética proposta por estas obras.  

Uma pequena pintura sobre cartão de 2017, algodões perplexos, é uma chave de compreensão do que tento dizer sobre estas obras. Cito esta, mas poderia citar várias outras presentes nesta exposição, que insistem na desfamiliarização do visível. Há nelas uma tensão aguda entre imagem e percepção, entre os elementos da cognição que recortam a figura e a experiência enraizada na visão junto à imaginação e ao corpo. Importa menos o que se vê e mais o que o ver implica em nós, nos modos como vemos. Seria uma tensão entre representação e presença. Ousaria dizer que saber sustentar essa tensão é uma maneira de defender a dimensão política da arte e da imaginação. Uma maneira, portanto, de enfrentar e assumir o desafio, e o próprio mal-estar, da estética. O tempo da arte não equivale ao tempo da política cotidiana, há que se assumir este hiato.

Em uma época de urgências políticas, como assinalado de início, as perplexidades do visível parecem ficar destituídas de força poética. A dificuldade de se apropriar do sentido e transformá-lo em um enunciado cognitivo ou normativo, parece fazer dele algo inútil. Mas é do interior desta inutilidade produtiva que se abrem brechas diante da dominação instrumental.  As peças de Waltercio resistem deliberadamente a esta oposição entre sentido e utilidade, como se do interior da perplexidade pudesse surgir outras composições de espaço e tempo, sem as quais a própria urgência do momento perderia força. Recusar esta possibilidade seria um recuo em relação ao papel da arte na abertura do imaginário para além do campo do possível.

Como apontou o filósofo Jacques Rancière em um ensaio recente, “a guerra pela reapropriação do tempo precário talvez possa ser o princípio de uma nova ligação entre rupturas coletivas e individuais”. O precário no tempo é o que quebra o determinismo do saber ver, o que abre a insegurança inerente a imaginar outras formas de ver. Esta seria uma política da insurgência subjetiva contra a urgência da política que nos impõe identidades e posições objetivas.

Os meios tons que sobressaem na paleta recente de suas pinturas são um elemento de intensificação da percepção que flutua entre profundidade e superfície, entre a luz e a sombra. Nada se mostra, tudo se esconde, algo se insinua de relance. Se nos desenhos a linha é simultaneamente precisão e delírio, nestas pinturas a cor é pulsão e opacidade, ou seja, é o que vibra na tela e esconde qualquer pretensão de figura, ou seja, de reconhecimento tácito. No livro Velázquez algo desta natureza se apresentava, fazendo do apagamento das figuras um elemento detonador de uma relação misteriosa entre luz, opacidade e tempo.

Tal apagamento era feito para instaurar no mero espaço um campo dinâmico de energias visuais. O jogo entre superfície e profundidade, entre luz e sombra, entre cor e mancha, entre ausência e presença, tudo isso só existe no espaço, no estar diante do que só pode ser no aqui e no agora. Espaço como condição de possibilidade das experiências, como o que nos faz ser no mundo, na terra, no corpo. Mero espaço diz da concretude e das intensidades inerentes à espacialidade, que fala sempre de uma situação na qual coabito com outros seres e entre coisas, gestos e movimentos. A separação cartesiana entre o “eu sei” e o “eu sinto” nunca foi pertinente para a experiência estética que sempre se fundou no elo entre sentir e pensar. O mal-estar na estética traz na origem a recusa da divisão epistemológica moderna e restitui nossa condição corporal com o que há nisso de maravilhamento e incertezas.

Esta restituição está em toda parte nas peças de Waltercio. Se nas pinturas o deslocamento perceptivo se dá especialmente entre superfície e profundidade, em Estátua a tensão é entre corpo e massa. Há uma forte insinuação corporal e pouca densidade material. Os pedestais de madeira concentram toda a massa, sobre eles encontramos três pequenos cubos de mármore, que, por sua vez sustentam a peça em si – um corpo vazado de aço inoxidável pintado de branco, desenhando no espaço uma confluência de movimentos e direções. Equilíbrio e instabilidade, fragilidade e imponência. A cada movimento que fazemos ao redor da peça, algo desaparece e algo surge.

Se em Estátua o movimento do olhar é todo levado para fora, ou seja, o desenho gráfico nos projeta em várias direções, em Ainda não tudo se concentra no meio da peça, no encontro suspenso de um copo flutuando e uma maquete pousada no centro de uma estrutura de aço inoxidável. A inversão de escalas, a tensão inusitada de elementos antagônicos, o jogo de transparência e opacidade, dão a esta escultura uma vibração contida e delirante.

O que mais impressiona nesta produção recente de Waltercio Caldas é a proliferação de situações poéticas combinando e tensionando elementos escultóricos como volume e gravidade, a elementos pictóricos, luzes e transparências e a elementos gráficos, linhas e recortes. Esta lógica, ou melhor, esta ética da convivência de diferenças é parte da política destas obras. É uma convivência ora tensa, ora suave, sempre potencializadora do que é mais caro à arte: sugerir possibilidades onde tudo parece assentado.   

Em livro escrito há quase cinquenta anos – Waltercio Caldas: Aparelhos – Ronaldo Brito faz uma pontuação que reverbera até hoje na poética do artista, a saber:

Procedimento borgiano: representar a representação equivale a problematizá-la, a introduzir uma dúvida inquietante na segurança da trama (...) o trabalho parece armar cuidadosamente a cena do espetáculo para afinal não apresentá-lo, ou talvez, sutilmente empastelá-lo. É necessária uma organização metódica para a construção de aparelhos de precisão, ainda que sirvam para marcar o Nada, delimitar o Vazio ou, perversamente, para Duvidar de seus próprios dados. Sem esse método nada feito: a mera exposição do Vazio não produz efeitos Vazios. E a função do aparelho é veicular Efeitos Concretos de Vazios.

Muito deste procedimento mantém-se atual, não obstante a poética de Waltercio tenha se desdobrado em direções àquela altura impensadas. Mas representar a representação para problematizá-la está no livro Velázquez e em muitas pinturas desta exposição. Mais evidentemente em uma pintura em que vemos um palco vazio, com as transparências das cortinas ao lado e a tensão da cena em suspenso. Nada se mostra e muito se insinua. Os aparelhos de precisão que marcam o nada são o acontecimento escultórico que acontece nos intervalos energizados entre os volumes, as linhas, as cores tonais e os ritmos atonais de muitas destas peças. Mais que tudo, o aparelho que veicula efeitos concretos de vazios é o que constitui meros espaços, que faz daquilo que se instaura aqui e agora uma incerteza ontológica. O que é pode não ser. O terceiro incluído é o que faz da arte um exercício na fronteira do impossível.

“A majestade transparente quer mais ar, espaços sem figuras. Seu destino é dissipar o chão dos ambientes”. Nesta fundação da incerteza, a obra de Waltercio mantém esticada a corda pela qual a arte foge das obviedades, do lugar comum, das identidades constituídas, da pressa, das evidências. É o que faz dela política, ou seja, deslocamento, em um mundo desesperadamente certo de si mesmo que anda assertivamente na direção do abismo.

 

Luiz Camillo Osorio

Março/Abril 2024