Entroncamento por Agnaldo Farias

Pedro David
Abril 18, 2024

Trecho do texto Entroncamento


Pedro David não precisou da pandemia para olhar para as coisas próximas, os objetos comezinhos com quem coabitamos os espaços de nossas casas. Sua trajetória artística  é permeada pelo estreitamento desse convívio, a compreensão da sua relação com o ambiente, do ritmo comum entre sua respiração e a respiração da casa. A visão da intimidade dessa relação ficou flagrante em suas primeiras imagens, por exemplo, na fotografia intitulada Cozinha (Série Rota Raiz, 2002-2012), protagonizada por pratos de ágata empilhados, uma reunião de panelas de alumínio amassadas, com nódoas cor de sujeira de debaixo das unhas, talheres reunidos eretos como uma tropa, em suma, um conjunto de coisas velhinhas com bordas desbeiçadas com pontos de ferrugem, o corpo do metal reagindo ao tempo, disposto parte sobre uma mesa, parte pendurado na parede como um varal desbaratado, testemunho pungente da interdependência entre nós e as coisas.


Pois estamos quebrando esse pacto. Com a série Madeira de lei, Pedro David trouxe uma sucessão de registros -Sufocamentos-: árvores deixadas para morrer em meio a plantações assassinas de eucaliptos, algumas ainda resistindo com suas copas verdes, outras já mortas, troncos cinzas, esqueletos calcinados, evidenciados na série posterior, Ossos, composta por esculturas de bronze, fundidas a partir destes restos, encontrados aos pés do cerrado.


O interesse pela natureza gerou proximidades de toda sorte. E qualificar sua produção recente, como a parcela escolhida para essa mostra, não dá conta da amplitude de sua ação. Será mais preciso designá-la como impressão. Como? A série Fotograma Esqueleto, por exemplo, consiste em colher folhas secas, desidratadas a ponto de reduzidas as suas estruturas. Nada lhes sobrou dos limbos, das regiões laminares, verdes de clorofila. Desgarradas dos corpos das árvores ou arbustos, ciclos encerrados, resta-lhes apenas os pecíolos, os vasos condutores e as linhas que arrematam as bordas, tudo ressequido como um vitral despojado de seus pedaços coloridos, um desenho intrincado e leve como se fora riscado no ar. Antes de desaparecerem pulverizados no chão o artista as toma. A delicadeza do material exige cuidados. Deposita uma ou mais folhas sobre uma folha de papel fotográfico de prata ou chapas para radiografias. Folhas sobre folha, deixa que a luz banhe o papel fixando sua ossada em preto e branco ou branco e preto. A série Carimbos de esporos envolve processo semelhante. Em lugar da suspensão da marcha da morte das folhas, um degrau antes de seu desaparecimento, Pedro David recolhe os esporos -as estruturas reprodutivas dos cogumelos-, que explodem desde o interior de suas pregas, lâminas e tubos. O papel apara parcialmente essa chuva, tecnicamente um carimbo propiciado por um único ou um conjunto de cogumelos.


Em ambos os casos fica patente a recusa da ação fotográfica como um lance superficial, um mero instante isolado da figura ou fato retratado. Benjamin, em sua Pequena história da fotografia (1931), defendia que o tempo dilatado despendido em uma fotografia capturava a interioridade do que era fotografado. Pedro David, evitando a instantaneidade contemporânea, coleciona e imprime fragmentos da natureza, aproximando-os das pinturas realizadas nas paredes das cavernas.

 

Agnaldo Farias

Agosto de 2023