Mata Seca, Mata Suja por Izabela Pucu

Louise Ganz
Março 13, 2024

Os trabalhos reunidos na exposição Mata Seca, Mata Suja dão notícia do reencontro de Louise Ganz com o exercício da pintura, ofício tão antigo como os fazeres ancestrais, pré-capitalistas, em meio aos quais surge a própria arte, ainda que plantas, campos, cartografias e a escuta do lugar - experiências que também dão origem a esses trabalhos -, estejam no horizonte da artista desde a época de seu Lotes Vagos (2004).

 

Esse reencontro, motivado também pelo diálogo com outros artistas e com seus alunos na Escola Guignard, por um lado, não deixa de ser um reencontro também com sua própria formação, realizada na interface entre pintura e arquitetura. Assim, podemos dizer que essas pinturas envolvem uma revisão crítica de seu próprio processo de trabalho e o questionamento do viés conceitual que dominou a arte contemporânea na primeira década dos anos 2000, atravessando também a sua produção. Outro aspecto que entra em crise nesse percurso é a ideia do artista como uma espécie de etnógrafo, muito recorrente naquela década, o que pressupõe uma posição de distanciamento e define o fazer artístico como pesquisa ou projeto, o que estabelece hierarquias entre pensar, sentir e fazer, entre prática e teoria.

 

O trabalho atual de Louise, feito a partir de seus deslocamentos cotidianos no cerrado que rodeia seu atelier, sem roteiro prévio, ao contrário, se vale justamente da proximidade e não do projetar algo a ser feito num território, como uma pesquisa de campo, cuja síntese será feita por meio de documentos, textos e imagens, ainda que a fotografia seja um recurso utilizado pela artista. Ao pintar Louise refaz a experiência de habitar a paisagem com o corpo, e não apenas pelo olhar, como um trabalho de memória corporal. Testemunham esse trabalho as texturas das rochas e das folhas, que parecem ter sido conhecidas no tocar; a água que corre do ponto de vista de quem está submerso e emite para nós, aqui fora do quadro, o frescor do banhar-se. A escala desses trabalhos reforça essa sensação de presença, de habitar, a meu ver, fundamental ao trabalho da artista como um todo, que rearticula, inclusive, a relação pintura-arquitetura presente na base de sua formação.

 

Se alinhamos ainda a retomada da pintura no trabalho de Louise ao interesse crescente por essa linguagem, que hoje e historicamente tem na dinâmica morte-renascimento a sua forma de permanecer atual, seus trabalhos guardam também uma contribuição singular.  Se grande parte da pintura feita hoje se ancora na questão temática e na figuração, o trabalho de Louise quer justamente nos colocar frente-a-frente com o ato de pintar, com a elaboração significativa da matéria sobre o suporte, no tempo, nos colocar dentro do diálogo com a imagem, que surge e se modifica a cada gesto, sem perspectivas e pontos de fuga. Está posto claramente nesses trabalhos que o compromisso da artista é com a experiência vivida e com o exercício da pintura, e não com a discursividade do real, nem com a sua ilustração.

 

Desse modo, não há uma verdade científica a ser lida nessas pinturas sobre o bioma cerrado, ao contrário, é o cerrado que se reinventa no pintar de Louise, com suas muitas variações típicas e atípicas, matas fechadas e abertas, campos limpos, sujos e murundus. Essa paisagem misteriosa e diversa, da qual se sabe pouco, como reconhece a artista, se oferece gratuitamente como espaço para o exercício ficcional da pintura, como se ofereceram ordinariamente os aspargos pintados por Édouard Manet em 1880, para muitos a pintura inaugural da arte moderna. Através das pinturas de Louise podemos afirmar que pintar é também sustentar esse embate no terreno da história da arte. Pintar, como disse certa vez o artista Carlos Zílio, implica no apagamento dos fantasmas que se interpõem entre o pintor e a tela, antes mesmo do primeiro gesto, a lhe interpelar sobre o que ainda se pode acrescentar ao mundo por meio desse ofício milenar.

 

A persistência da artista nesse exercício, que resulta nas suas obras atuais, se mostra de diversas maneiras, mas, especialmente, na sobreposição de infinitas camadas, de velaturas, no retorno ao trabalho, no apagamento e na inscrição da imagem até a exaustão do suporte, nesse diálogo que segue, muitas vezes ao longo de meses, até que o trabalho diga chega.  Esse modo de fazer, podemos dizer, tem um caráter feminino, na medida em que os gestos que conformam a sua pintura não são "geniais", não são jorrados na tela tal qual um gozo assertivo, rápido e espetacular, como performado de forma emblemática pelos drippings de Jackson Pollock. Antes são a sustentação desse embate com a pintura no tempo, processo que se dobra sobre si mesmo muitas vezes, incluindo coragem e hesitação, numa temporalidade espiralar que tem a densidade do gozo feminino, como os verdes, cinzas, laranjas, como o som de pássaro e o vento que sopra nos emaranhados de rocha, água e capim das pinturas de Louise.

 

 Izabela Pucu

março de 2024