Mundaréu por Ana Salazar Herrera

Froiid
Fevereiro 15, 2024

As múltiplas narrativas que Froiid tece ao conceber esta exposição – que não é apenas um espaço físico, mas igualmente emocional, mental, imaginário – encontram-se profundamente enraizadas na cultural popular brasileira. Em conjunto, elas constroem um espaço para o convívio e o lazer, para o jogo e para a malandragem. O artista invoca um universo maioritariamente masculino, onde coexistem as apostas e o vício, o vagar e a competição, a sorte e o azar. Entramos em Mundaréu e somos instantaneamente implicadas/os através dos convites abertos ao jogo. Entramos em Mundaréu e somos envolvidas/os por uma amálgama de sons ecléticos. Entramos em Mundaréu e assim fazemos parte de uma homenagem afetuosa aos espaços de partilha da classe trabalhadora. Com um aceno ao escritor, ator, jornalista e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) e as suas Histórias das quebradas do mundaréu (1973), Froiid conecta futebol e sinuca, política e inteligência artificial, ícones e ditados populares.

 

À entrada estão expostas em fila 20 bandeiras com varas de bambu de 5 metros de altura, constituindo Sapo de Fora não ronca (2022) que inclui também uma caixa de som colocada na rua, difundindo gravações de jogos de futebol e cantos e tambores de torcidas organizadas. As cores e padrões das bandeiras correspondem a emblemas de clubes de futebol locais. Três jogos de tabuleiro estão espalhados na área de entrada, prontos para serem usados. Estes Petelecos são derivados de campos de futebol e têm títulos como Cabeça de área, Zona do Agrião, ou Ai o bambu quebrou no meio, os quais aludem às formas recortadas dos tabuleiros e às assimetrias que favorecem uma das partes. Duas impressões fotográficas multiplicam as jogadas La mano de Dios (Maradona, Copa do Mundo, 1986) e Drible da Vaca (Pelé, Copa do Mundo, 1970) criando padrões geométricos em preto-e-branco, acompanhados dos vídeos das respetivas jogadas em loop. O histórico gol de Maradona pela Argentina que ele denominou como uma vingança simbólica contra a Inglaterra devido à Guerra das Malvinas (1982), e o histórico não-gol de Pelé pelo Brasil, apelidado o gol que não foi, mas deveria ter sido. Estes dois ídolos ocupam espaços legendários, míticos, que apelam ao imaginário coletivo do povo.

 

O centro da galeria é ocupado por uma mesa de sinuca vermelha de 13 metros de comprimento com o título É hora da onça beber água (2020), inspirada pelas pinturas de mesas de sinuca do artista e fotógrafo estado-unidense Man Ray (La Fortune, 1938 e 1973), do pintor holandês Van Gogh (Le Café de nuit, 1888) ou do pintor afro-americano Jacob Lawrence (Pool Parlor, 1942). As pernas da mesa escondem altifalantes que ampliam os sons do jogo através dos microfones instalados em toda a superfície. Assim as jogadas são sempre amplificadas, especialmente quando as bolas caem nos buracos. Ao alongar a mesa e usar a cor vermelha, o artista não só acentua um imaginário político particular, mas também abre espaço para a inclusividade e a coesão social. O comprimento exagerado da mesa alonga metaforicamente o tempo lúdico, enquanto monumentaliza o jogo e o convívio alegre. Froiid também cita os quadros do compositor de samba, cantor e pintor brasileiro Heitor dos Prazeres, que retratou a vida nas favelas, com jovens sambando e jogando, muitas vezes com a cabeça e a vista viradas para cima. O título da obra é uma expressão que indica um momento perigoso – quando a onça bebe água ao cair da noite, os outros animais estão em alerta.

 

Em volta da mesa, quatro pinturas abstratas lembram as linhas direitas de Piet Mondrian, porém servem de quadros onde as pessoas podem escrever com giz as marcações dos jogos. As linhas existentes vão guiar o público a encontrar formas de marcação e de escrita inusuais. Os dez quadros em Na mão do calango 1 a 10 representam jogadas impossíveis de sinuca desenhadas sob tecido de mesa de sinuca verde. O mesmo tecido é usado nas pinturas de Tríptico com silhuetas diretamente retiradas do quadro Jogo de Sinuca (1963) de Heitor dos Prazeres. Nas molduras estão gravadas as frases Não me inveje, trabalhe; O olho do dono que engorda o boi; A língua é o chicote do corpo. Com o uso de uma linguagem popular, a forma e o conteúdo das obras se enraízam e entrelaçam na cultura de massa, enquanto as expressões em si são analisadas de perto, recebendo assim novas camadas de significado. Na mesma linha, uma série de quadros utilizam imagens icónicas, apropriadas por caminhoneiros e motociclistas para adornar os seus veículos.

 

Um sofá junto a uma parede de altifalantes convida a escutar O pulo do gato (2023), uma instalação de som com letreiros luminosos, feita em colaboração com o rapper brasileiro Matéria Prima. Os versos e batidas são remixados num stream infinito, cujo código é visível nos ecrãs LED. Aludindo às práticas e estéticas do tuning, a obra é também uma homenagem ao rap, à criatividade infinita e ao génio musical dos artistas.

 

A exposição fecha com uma fotografia que retrata um campo de futebol em terra batida. Vemos apenas o canto. Uma pedra marca a esquina e as linhas são desenhadas com cal. O saco de cal aberto está jogado no chão e as linhas estão já esbatidas, misturadas com a areia, como consequência do jogo que aconteceu. A força da fotografia está na forma como ela consegue encapsular o espírito sonhador e competitivo de tantas crianças e jovens com pouco acesso. No jogo, tudo é possível – é só preciso um pouco de cal e já a terra batida se transforma num verdadeiro campo de futebol. A força que se encontra dentro desse gesto é grande demais para caber numa foto e então se expande para todo o espaço em volta.

 

Mundaréu é um lugar generoso para ser vivido, jogado, habitado. Através da coreografia espacial, transmite-se o lado físico e a corporalidade do convívio, assim como uma postura orgulhosa, empenhada e desafiadora. É um lugar para sonhar, mas também para lembrar aqueles que viveram vidas de opressão social e racial, que encontraram resistência na partilha e nas relações interpessoais. Com esta sala de estar, marcada pelo seu carácter identitário, Froiid desdobra o tempo livre e nos chama para nos aproximarmos mais uns dos outros, para não perdermos as redes sociais físicas e para apreciarmos a profundidade e riqueza do conhecimento popular.

 

Ana Salazar Herrera