Em meio a destroços e decretos de morte, entretanto, a crença luminosa e otimista na pintura nunca foi de fato interrompida. Basta lembrar, que em 1912, uma breve, mas notável, melodia pictórica havia sido capaz de superar as adversidades e embates críticos acirrados pela dolorosa Primeira Grande Guerra: Robert e Sonia Delaunay, Frank Kupka, Fernand Léger, Francis Picabia, e, inclusive, um jovem Marcel Duchamp levaram o poeta Guillaume Apollinaire, em plena modernidade industrial, a lembrar do mito grego de Orfeu para dar nome a um movimento – Orfismo – que associava a dimensão intangível e lírica da música aos ritmos formais e, principalmente, cromáticos da tinta sobre o plano da tela. Como peregrinos rumo a um terreno crítico inabitado e difícil de ser resumido em termos figurativos, os orfistas realizaram obras de grande magnitude, não em termos de escala, mas no que diz respeito à invenção de uma nova linguagem artística: a abstração.
Percorrendo o terreno desse vocabulário inventado há cerca de um século, a carioca Duda Moraes pinta “La Huaca”, “Sacsayhuaman”, “Atahualpa” e outros trabalhos de grande vigor e eloquência, realizados logo após sua viagem pelo Peru e que integram a sua primeira individual em Belo Horizonte. São obras que trazem em seus títulos e em sua superfície as marcas de sua jornada não apenas física, mas também sensível por terras vizinhas ao nosso país. Esses vestígios cromáticos carregados de contrastes e explícita sensibilidade, remetem justamente à certas ambições do breve, mas marcante, movimento orfista e o deslocam temporalmente ao conecta-lo de maneira singular à cultura peruana, que por sua vez assimila tradições indígenas e espanholas. No movimento operado por Duda, o avant-garde europeu dialoga e contrasta simultaneamente com mitos ancestrais Incas e com o Barroco particular dos Andes em plena Minas Gerais, reafirmando a capacidade da pintura de conectar poética e conceitualmente momentos e lugares que muitas vezes são distanciados pelas engessantes historiografias.
Em “Coricancha”, obra de grande formato e que merece destaque, um denso e luminoso disco amarelo de tinta a óleo é situado no topo do quadro e flutua sobre velaturas para remeter simbolicamente ao “templo dourado” inca, localizado em Cusco. Nessa obra, formas que orgânicas multicoloridas, mas que por vezes insinuam certo caráter geométrico, ora se justapõem, ora se entrelaçam concebendo uma espécie de paisagem ou construção inconsciente, sugerindo as sensações do contato da artista com o poder material e imaterial da edificação sagrada em questão. Para Duda talvez seja impossível representar exatamente o impacto de sua experiência ao adentrar esse recinto singular. Desse modo o caráter fugidio, e louvável, da ambiguidade da abstração dessa pintura serve com maestria para recordar a perplexidade que muitos de nós sentimos ao imergimos e nos entregarmos de corpo e alma a certos espaços dedicados ao sagrado.
Em uma época de artes sensacionalistas e supostamente relacionais, as obras de Duda buscam romanticamente caminhar por lugares que escapam da massificação e da ansiedade consumistas ou, ainda, de uma rasa ideia de brasilidade. O interesse da artista reside não apenas na fisicalidade da tela e das tintas, mas em uma jornada individual, emotiva e imaterial. Trata-se não apenas de uma caminhada por terras montanhosas e santas, lares de povos que sofreram e ainda sofrem com a invasão colonialista. As obras da artista revelam uma jornada que nunca se encerrará em um local concreto e específico, pois o destino da verdadeira terra sagrada da pintura evocada por Duda é o infinito.
Alvaro Seixas
Rio de Janeiro, março de 2017.