Hy-Brasil é uma ilha fantasma, presente
na mitologia irlandesa. Dizia-se que a ilha
era constantemente envolta em névoa, exceto
por um dia a cada sete anos, quando
se tornava visível, ainda que permanecesse
inalcançável.
As relações de pertencimento territorial, geográfico e cultural ocupam um espaço central no processo criativo de Eduardo Hargreaves. O artista visual mineiro utiliza desenhos, objetos, animações, vídeo performances e instalações para refletir como as subjetividades decorrentes dos processos do colonialismo e do neocolonialismo interferem na construção do espaço e do lugar do próprio indivíduo, assim como de um povo e de uma nação.
O conjunto de obras que compõe a exposição Brasil, Hy-Brasil transgride as convenções cartográficas para apresentar um território em perene construção e desconstrução, rizomático, que nos desafia a reconsiderá-lo graças à presença do arbitrário como terreno para a partilha do sensível. A fluidez presente nas imagens de Hargreaves realçam a negação como resultado das (rel)ações exploratórias e extrativistas que, aos poucos, vão consumindo paisagens, relevos e toda uma geografia afetiva.
Dormentes que outrora testemunharam o transporte desses lugares na ávida busca pelo desenvolvimento, sustentam no espaço expositivo imagens estendidas como bandeiras, demandando-nos envolvimento a fim de atravessar as diversas camadas das montanhas de minas que cercam e norteiam o nosso cotidiano para (r)estabelecer um verdadeiro diálogo com a força simbólica e flagrante das montanhas de Minas.
Um labirinto de imagens é oferecido ao olhar –– extensão sensível do reino da visão, onde a aparição dos elementos é objeto de uma constante dualidade entre o que podemos ou não reconhecer. No entanto, na intenção de fazer existir próximo de si aquilo que ao longe escoa, Hargreaves não se esquiva de uma confrontação com a decepção. Por meio de uma construção godardiana, percorre os cômodos da coisa fria também chamada memória e, ousando atravessar os muros desse espaço onde habita o infinito, no desejo de vislumbrar a sua dissolução, alcança novas paisagens. Nesse processo, não há coincidências entre a localização de um território cujo mapa consultamos e a imagem mental que nos surge, desmesurada, à chamada de seu nome como sedimento depositado na nossa memória.
Tendo consciência do poder da fotografia de preservar e consolidar memórias e fragmentos, pois “quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo”¹, a obra de Hargreaves reflete também sobre os traumas da visão. Se o retrato cumpre o dever de manter vivos aqueles que não estão mais presentes, a instalação Comunhão nega-nos a imagem enquanto gatilho e eixo dessas percepções. Ao se debruçar sobre essa tentativa, o espectador se depara com uma dupla negação –– da visão e da memória. Assim, o artista obriganos a ceder para manter vivas as nãoimagens, instigando-nos a construir um sentido possível, a dar-lhes um lugar, construir uma identidade para elas a partir do vazio que explicitam na sua ausência.
A fronteira entre a não-paisagem concreta e pública e a paisagem abstrata e privada encontra-se em constante modificação na obra de Hargreaves. Nesse espaço intersticial, imiscui-se a criatividade. A refinada cromia e a visceralidade dos traços do artista constroem uma impressionante topografia emocional, porta aberta rumo ao imaginário criativo e sensível. Na paisagem contemporânea, muitas vezes reduzida a um repositório de vidas e memórias camuflado sob uma não paisagem, a exposição Brasil, Hy-Brasil incita-nos a uma relação proxêmica trajetiva e sugere
ainda a necessidade de reconstrução de uma cartografia sensível face ao horror da paisagem que nos cerca.
Luiz Gustavo Carvalho
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[1] Frase de Susan Sontag extraída do livro Diante da Dor dos Outros (Companhia das letras, 2003).
A exposição individual Brasil, Hy-Brasil de Eduardo Hargreaves foi contempada pelo 3º Prêmio Décio Noviello e aconteceu na Galeria Arlinda Corrêa Lima & Foyer entre 14 de Março a 28 de Maio de 2023.
