Todos os corpos são feitos de água por Guilherme Giufrida

Laura Belém
Fevereiro 1, 2020

No final do século 19, descobriram que as águas de Wildbad, em Rothenburg ob der Tauber, Alemanha, continham componentes curativos. Então, Friedrich Hessing, considerado um dos inventores da tecnologia de próteses para membros amputados, idealizou a construção de um castelo, que abrigaria um spa para tratamentos de saúde. Com o ressecamento progressivo das fontes termais na região, o prédio e o parque se transformaram em diversos usos, e hoje convidam artistas a conceber obras permanentes para o local.

 

O [...] elemento, de Laura Belém, ocupa um espaço escolhido pela artista sob as estruturas do edifício, cuja arquitetura parece mimetizar a geologia, remetendo a uma gruta, caverna ou outro abrigo em meio às pedras. As marcas do projeto e da construção, porém, são evidentes: o arco de tijolos perpendiculares – que fazem lembrar também um portal –, as janelas simétricas à escadaria do lado de fora, a parede linear, mesmo que composta por formas irregulares.

 

O áudio da instalação, uma quadrifonia circular, parte da paisagem sonora às margens do rio Tauber que circunda o parque, e foi gravada por Belém em seu período de residência artística. Ruídos de insetos, barulhos de água – do curso fluvial, dos moinhos, da chuva – e cantos de pássaros são masterizados com instrumentos musicais, tambores, guitarras, assobios, em ritmos que mudam de velocidade, entre a contemplação e o suspense. Ao final, corpos parecem despencar na água, que segue seu fluxo.

 

Essa dramaturgia deve ser lida junto ao texto The element, unmentioned [O elemento, não mencionado] da poeta suíço-alemã Nora Gomringer, escrito especialmente para a obra de Belém. Por meio de versos em língua alemã e inglesa dispostos de forma espelhada, o poema se constrói por verbos e imagens líquidas: molhar, lavar, secar, regar, pingar, escorrer; o suor, o gole, as gotas, as lágrimas. Histórias de humanos e não-humanos narrando-se através da água: beijos eram úmidos, o rio queixou-se, o peixe falou, a noite ficou molhada, ela regou o cervo e o riacho inchou. Esse último, trecho central que reflete e traduz o poema em dois idiomas, é a imagem inversa do processo de ressecamento.

 

Outro elemento central do trabalho é uma bomba d'água manual encontrada pela artista através de um anúncio no jornal da cidade. O objeto é usado há séculos naquela região para, a partir do gesto e da força mecânicos operada por humanos, trazer a água para a superfície, invertendo o fluxo natural da gravidade que a mantém no subterrâneo, possibilitando seu uso doméstico. Mesmo com as novas tecnologias, muitas casas nas regiões rurais da Alemanha ainda adquirem e expõem essas bicas que, em geral, mesmo que menores e produzidas industrialmente em escala no presente, imitam o seu antigo desenho, com temas florais e referências antropomórficas – no caso, a estatura do objeto na instalação (2,00 m) é próxima a de um corpo.

 

Mas, o elemento determinante, que dá título à obra, é ausente, desaparecido, fantasmático, [...]. Nenhum adjetivo parece dar conta. Nenhuma e todas as palavras ao mesmo tempo. A água aqui, e tudo que ela incorpora – quimicamente, historicamente, seus fluxos, sua cor, seu brilho, seu som – é como a parte amputada de um corpo. Tempos depois sem o órgão, contra a realidade palpável, para o ser vivo e sensível que continua existindo, o membro parece ainda estar lá. A arte pode estender o tempo dessa dor – ou gerar artifícios que curam, como as próteses de Hessing. O [...]elemento coloca em equivalência elementos físicos e invisíveis, tornando material o que só quem perdeu poderia reconhecer.

 

Laura Belém parece criar esta peça sonora para contar todas as histórias que a água (não) conta, embaralhando a natureza fisiológica e a ficcional da sua presença naquele espaço e naquelas vidas. A artista dispõe um objeto-trouveé nesta galeria-gruta, apenas limpa e iluminada. A vida, da água e na água, atravessa essas fontes que permitiram e presenciaram tudo – ao contemplá-las, nota-se sua superfície enferrujada, marcas do tempo de contato com o ar e a água impregnados no metal. Os objetos e a arquitetura carregam consigo seus fantasmas, presentes também nos ruídos e no texto falado que surge camuflado ali. As narrativas, assim como a água, vão, mas as coisas ficam. Através delas, e do gesto de apresentá-las com algum destaque, reserva e até ritual, é possível fazer ver, sentir e presenciar. Tudo ali, o castelo, o parque, esta obra, você e eu, só existimos por causa dessas águas e dessas histórias.

 

Guilherme Giufrida

Fevereiro, 2020

 

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