Inebriare por Carollina Lauriano

Mateus Moreira
Agosto 30, 2023

Havia acordado de um sonho. Nele, um eu que não era eu passeava por frestas e espaços escuros, ouvindo uma sorte de pessoas dizendo que o mundo estava por acabar. Bizarramente, não havia confusão. Nem tão pouco o clima era caótico. Muito menos o cenário era apocalíptico e desesperador como se presume que aconteceria em situações como essa. Pelo contrário. Havia ali um estado de iminência. Tanto que circulava entre as pessoas um burburinho de que se o mundo fosse mesmo acabar naquela hora, o que se guardaria para a posteridade. Nas respostas haviam divergências, mas eu, quieta no meu canto observando tais discussões, pensei que se é para acabar e iniciar tudo de novo, desejaria começar em silêncio.

 

Esse sonho nunca aconteceu. Mas ele serve como uma ficção das possíveis análises subjetivas presentes nos trabalhos de Mateus Moreira. Há em suas pinturas um constante estado de tensão entre fins e começos, como se a ação de sua pincelada nos colocasse à espera de um acontecimento tanto indescritível, quanto inevitável, e que nesse meio tudo se encontrasse inebriado. Nem desespero, nem esperança, mas em constante espera. Não obstante, o artista escolhe como título da mostra uma palavra que exprime uma dualidade entre o atordoamento e o êxtase.

 

Embora suas composições pictóricas partam de uma observação errante de espaços ociosos que o artista observa pela cidade, o trabalho de Mateus Moreira me parece um comentário muito maior do que apenas apontar o descaso das consequências do nosso desenvolvimento urbano pouco, ou quase nunca, planejado. Digo mais, é dessa observação que o artista nos desperta - mais uma vez - sensações antagônicas. Se por um lado é indispensável abarcar o progresso como parte da própria evolução humana, com seus feitos e conquistas, por outro, ele coloca esse mesmo progresso em xeque, sendo ele o responsável direto pela destruição da humanidade - vide as ameaças políticas, econômicas, e especialmente as ambientais, que vêm marcando o século 21.

 

No entanto, Moreira aposta em uma cartela de cores que figura entre o preto e as nuances do laranja e em pinceladas que intercalam entre a velocidade, a precisão e a meticulosidade do gesto. Surgindo entre o dia e a noite, no lusco-fusco do entardecer, esse estado de suspense presente em suas pinturas nos coloca diante à possibilidade de reimaginar o mundo, mesmo sem a certeza de que outro dia surgirá após a noite. E tal suspensão não é apenas um elemento subjetivo na pintura de Moreira. Podemos observar em algumas de suas composições corpos suspensos que podem ser compreendidos entre a busca pela redenção, ou sucumbido ao declínio.

 

E são todos esses recursos conceituais e escolhas técnicas presentes nas pinturas de Moreira que me fazem pensar que mesmo que elas apontem um certo fatalismo-pessimismo, é desse revés que surge a potência de nos tirar da letargia que parece acometer uma grande parcela da sociedade e reagir diante tantas crises. Se estamos vivendo um mundo em frangalhos, Mateus Moreira nos aponta que ou a gente se maravilha diante das possibilidades de construção de novos futuros, ou seguiremos entorpecidos diante dessas mesmas possibilidades. E eu prefiro pensar que ao invés de uma postura melancólica diante de um caminho que se desenha cada vez mais apocalíptico, podemos escolher afirmar diariamente todas as várias formas de vida.

 

Carollina Lauriano

 agosto/2023 – SP Arte – Rotas Brasileiras