Investigação da cidade em campo ampliado: um percurso pelo trabalho de Louise Ganz por Guilherme Wisnik

Louise Ganz
Outubro 31, 2023

Lembro de ter conhecido o trabalho de Louise Ganz em 2009, numa fala de Breno Silva no Centro Cultural São Paulo apresentando a intervenção “Lotes Vagos”. Trata-se de um trabalho de intervenção urbana concebido por Louise e produzido pelos dois em Belo Horizonte e Fortaleza, em 2005 e 2008, como uma série de ocupações experimentais nas quais os artistas identificam a presença de terrenos baldios em áreas suburbanas da cidade e pleiteiam a aprovação de uso temporário desses lotes como espaços de descanso e lazer, equipando-os com redes, cadeiras dobráveis e outros aparatos de estar, ou como áreas de plantio e convívio com a natureza residual da cidade.

 

Um pouco antes, em 2006, eu havia apresentado uma conferência sobre Gordon Matta-Clark no ciclo de seminários preparatórios para a 27ª Bienal de São Paulo (“Como viver junto”), com curadoria de Lisette Lagnado. Na pesquisa, havia me interessado muito por “Reality Properties: Fake Estates” (1973), trabalho no qual o artista identifica e compra (por preços muito baixos, em leilão) uma série de terrenos esdrúxulos em áreas periféricas de Nova York –sobretudo no Queens –, nomeando-os como lotes mortos. Enquanto os seus cortes em edifícios, mais conhecidos, realizam esculturas em escala arquitetônica, “Fake Estates” faz uma poderosa crítica da violência perpetrada pela especulação imobiliária na periferia de Nova York, desvelando a irracionalidade que há por trás do ordenado grid cartesiano que desenha a cidade.

 

Assim, em 2009, quando fui apresentado ao trabalho “Lotes Vagos”, tive logo grande interesse. Importante lembrar que àquela altura ainda não havia primaveras árabes nem Occupy Wall Street. A onda de insurreições nos espaços públicos estava em gestação silenciosa e subterrânea, e no Brasil o predomínio do automóvel, dos muros, guaritas e cercas elétricas, e da sociabilidade no interior dos shopping centers pareciam ainda não ser objeto de qualquer contestação. Em São Paulo não se falava em Parque Augusta, nem em Parque Minhocão ou Parque do Rio Bexiga. Em Belo Horizonte ainda não havia o movimento Praia da Estação, e as várias práticas de ocupação de espaços públicos no país ainda eram bastante embrionárias.

 

No mesmo ano de 2009, tive grande impacto ao visitar a exposição “Post-it city: cidades ocasionais”, também no CCSP, que contava com uma instalação de Louise Ganz. Penso agora, aliás, que a palestra de Breno Silva deve ter sido feita no escopo dos encontros promovidos por aquela exposição. Surgido em Barcelona em 2005, o projeto “Post-it city” faz um impressionante inventário de estruturas e ações efêmeras em inúmeras cidades do mundo. Equipamentos “post-it”, ligados muito mais à informalidade do que às práticas e instituições formais, e que uma vez removidas podem reaparecer em outros lugares e contextos. Algo que já me interessava desde a leitura, alguns anos antes, do livro “Mutations” (2000, Actar), organizado pelo grupo de pesquisa Project on the City (Harvard University), coordenado por Rem Koolhaas.

 

Com esse conjunto de interesses, reforçado pelo conhecimento do trabalho pioneiro de Ganz, li o texto “Terrain vague” (1995), de Ignasi de Solà-Morales. Embora já conhecesse o movimento situacionista, a antologia de textos organizada por Paola Berenstein Jacques, e o livro “Walkscapes” de Francesco Careri, não tinha ainda realizado bem a ideia de potência latente que há nos terrenos baldios das grandes cidades. E, estudando o bólide “Lata-fogo” (1966) de Hélio Oiticica, compreendi melhor essa ideia, e sua contraposição ao elogio – mais formal e pacificado – do espaço público tal como aprendemos nos cursos e nas práticas de arquitetura e urbanismo. Entendi também a pertinência e a contundência dessas ideias no contexto de cidades de países subdesenvolvidos (hoje nomeados como pertencentes ao Sul Global, e alheios ao chamado “Ocidente”).

 

Tudo isso se tornou central para mim quando, no ano explosivo de 2013, fui curador – com Ana Luiza Nobre e Lígia Nobre – da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo. Com o tema “Cidade: modos de fazer, modos de usar”, organizamos a exposição como um evento em rede, sediado em lugares conectados pelo metrô, e incluindo uma série de ações efêmeras em lugares distintos da cidade. Ativista, aquela bienal lançava luz sobre os vários modos de se usar a cidade, e não apenas de se desenhá-la em projeto. Ali, no escopo da Chamada Aberta de trabalhos que selecionamos a partir de inscrições prévias, incluímos a documentação do projeto “Bicicletas ambiente – economias de quintal” (2013), realizado por Louise Ganz e Ines Linke em Belo Horizonte naquele mesmo ano. Ação na qual as duas artistas, usando bicicletas equipadas por hastes de bambu, se deslocam por bairros predominantemente informais da capital mineira coletando e transportando coisas (sobretudo alimentos). Com foco nas microeconomias da cidade, elas celebram o encontro realizando ações em espaços públicos, nas quais as bicicletas transformadas se tornam mesas e quiosques capazes de reunir as pessoas.

 

Dez anos depois, agora, em 2023, finalmente viemos a nos conhecer pessoalmente, no contexto da exposição “Lugar Imaginado, Lugar Vivido: 80 anos da Casa do Baile”, que curei com Marina Frúgoli na Casa do Baile da Pampulha (Centro de Referência de Arquitetura, Urbanismo e Design). Exposição que celebra os 80 anos da casa e, ao mesmo tempo, demarca um escopo de ação para o Centro de Referência. Nesse contexto, convidamos Louise Ganz, que apresentou o grupo de Pintura ao ar livre, coordenado por ela, para então realizar o trabalho “Vastas Planícies, outros Campos de Pedra”. Trata-se de um grupo de investigação da cidade que realiza pinturas em suas caminhadas, tendo como objeto tanto a prática pictórica quanto o envolvimento com lugares e pessoas em situações de racismo ambiental, e suas diversas formas de resistência a isso. No caso da exposição que organizamos, nos parecia importante contar com trabalhos contemporâneos que pudessem trazer ao espaço expositivo elementos presentes no bairro da Pampulha e seu entorno, mas vistos desde ângulos não glamourizados pelo patrimônio arquitetônico moderno, e sim mais atentos e rentes à precariedade e à informalidade também presentes ali – e, ao mesmo tempo, às redes de apoio e coletividade que subjazem a esses lugares, aportando outras compreensões do que seja o espaço público.

 

Em suas caminhadas, o grupo encontra e retrata uma série de lugares em processo de degradação, promovidos tanto pela ação de obras desastradas de infraestrutura quanto pela prática predatória do mercado imobiliário. Com efeito, registra também o modo como a essa prática de devastação se sobrepõem movimentos de resistência, onde pessoas se encontram com a terra e as águas, para plantar, morar e lutar pelos espaços e pelo direito à vida, em projetos de agricultura urbana, em movimentos pela preservação de córregos a céu aberto, nascentes e matas urbanas, em movimentos de ocupação pela moradia, em quintais e terreiros, reinados e quilombos. O que se pode ver claramente, no caso da Pampulha, no encontro do grupo com a Ocupação Dandara – que, não por acaso, tem presença importante também no trabalho de Louise com Ines em 2013, nas “Bicicletas ambiente”.

 

Se a pintura permite uma aproximação lenta e dialogal com lugares e pessoas – muito diferente da fotografia, por exemplo –, reforçando laços humanos, a abordagem conceitual, de forma complementar, lança luz sobre as questões ambientais, desmontando uma leitura tradicional e canônica – infelizmente ainda muito presente no caso do olhar sobre a Pampulha – de separação entre o patrimônio edificado (cultura) e a natureza (lagoa). Crítico em relação a essa perspectiva, o que o trabalho do grupo nos mostra é uma experiência do território no qual construções, pessoas e paisagens estão imbricadas, e constituem, de forma indivisível, o próprio cerne do problema a ser enfrentado. Na trajetória de Louise Ganz, a pintura não deixa de ser também uma estratégia performativa de investigação da cidade em campo ampliado.

 

Guilherme Wisnik

Outubro de 2023

 

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Imagem:

Lote 12: Redes para descanso

Endereço: R.Gomes de Matos,1732 / Bairro Montese Cidade: Fortaleza Data: 31 de março de 2008 Colaboradores: Constance Pinheiro (estudante de arquitetura, artista) Características do sítio: Trata-se de uma rua comercial. O proprietário, Sr. Carlos, aluga o lote para agências de propaganda colocarem outdoors na testada voltada para a rua. Proposta: colocação de redes para descanso no horário do almoço para os funcionários que trabalham próximos dali. Aproveitamos a estrutura dos outdoors para amarrarmos as redes. Pessoas envolvidas: funcionários das lojas vizinhas ao lote e passantes.