“I'm alive”
É relativamente recente o trato da artista Germana Monte-Mór com uma paleta variada de cores em seus trabalhos.[1] Desde 2015, ela realiza de maneira mais constante desenhos e pinturas em que o asfalto e a tinta a óleo surgem como protagonistas de formas orgânicas a simular uma dança lenta e envolvente num espaço movediço. Como um desenvolvimento natural de sua poética, que desde os anos 1990 se apresenta no limiar da experimentação entre matéria e forma, o aspecto geológico[2] de suas obras mais recentes é acrescido de uma poderosa energia na qual diferentes tons de azul, vermelho, verde, rosa, laranja, marrom e amarelo transformam a superfície num campo de irradiação luminosa.
O apelo sensorial dos trabalhos em asfalto decorria de uma certa remissão ao informe, com suas linhas e bordas sinuosas e o movimento lento e espontâneo que pareciam performar, e cuja sensação era potencializada pela evidenciação do caráter mineral da tinta que seguia espontaneamente um caminho de diluição e solidificação no contato com as superfícies (da tela e do papel). Agora, a materialidade incorporada da cor está em primeiro plano. Trata-se de cores puras, vibrantes, extrovertidas, que nos relevos em que a artista sobrepõe duas telas surgem em combinações ousadas.
Em seu conjunto, as obras lembram inscrições pré-históricas, como figurações sedimentadas numa pedra ou no muro, cujas formas curvilíneas sinalizam para um processo de vida em atividade, em expansão e adaptação recíproca. No entanto, as cores fortes e saturadas estabilizam as passagens com contornos demarcados, pulsando afirmativamente diante de nós. E assim parecem dialogar com o tipo de alegria dissonante dos papéis colados de Matisse ou com a graça dos relevos e colagens com figuras amebóides de Hans Arp.
A exploração da tridimensionalidade presente em trabalhos com relevos se dá tanto pela criação de recortes vazados, quanto pela colagem de figuras em feltro sobre a tela colorida, em uma brincadeira de positivo-negativo das formas orgânicas que a artista faz migrar de um trabalho a outro, como num jogo combinatório no qual o semelhante nunca é igual. Essa dinâmica em aberto também é, a meu ver, a causa do prazer especial que provocam: uma sensação de liberdade, de multiplicidade, de variedade que em nada se aproxima do caráter repetitivo e limitante da sociedade contemporânea.
E novamente estamos imersas e imersos no mundo natural, pois os trabalhos de Germana Monte-Mór não nos deixam esquecer da parte encarnada da arte, daquilo que ela tem de sensual e corporal. Desde a modernidade, lutar contra o anestesiamento ou alienação do nosso próprio corpo sempre foi uma tarefa da arte em meio ao ambiente inóspito produzido pela sociedade industrial e pós-industrial. Ouso dizer que, após os últimos anos de confinamento por causa da pandemia, em que as relações humanas foram reconfiguradas e todo o nosso aparato sensório sofreu um processo de fragmentação acelerada por conta da crescente virtualização da vida, a atitude de reocupar o espaço sensível, de recolocar o corpo no centro da experiência, não é uma tarefa simples. Ao mesmo tempo, coloca-se como um exercício fundamental para uma possível política das artes hoje. E, ao contrário do discurso corrente, não é somente por meio de contra-narrativas que seguem o desejo legítimo de reparação que a arte pode ter esse papel político. Todavia, é também apostando na redescoberta dos sentidos por meio de pequenas delicadezas e de gestos sutis e silenciosos, tal como realiza Germana Monte-Mór nesses trabalhos que são figurações de um lugar de vivência pulsante. Pois, apesar de tudo, estamos vivos.
Taisa Palhares
[1] Como observou o crítico de arte Rodrigo Naves no ensaio “Germana Monte-Mór: percursos da imaginação” (2017), escrito como apresentação da mostra da artista na Galeria Estação, em São Paulo.
[2] O crítico de arte Tiago Mesquita observou com cuidado a predominância de motivos geológicos na obra da artista na apresentação do livro “Da cabra”.