You cannot say, or guess, for you know only
A heap of broken images, where the sun beats
And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief,
And the dry stone no sound of water. (...) *
T.S. Eliot
O modo como os artistas compõem a luz, a temperatura, a umidade e as massas de ar que permeiam os objetos em uma paisagem é um assunto antigo. Antecede mesmo a consolidação da paisagem como um gênero pictórico na arte europeia. A questão foi discutida em tempos diferentes, por tradições diferentes. Para tomarmos só dois exemplos, podemos citar o debate renascentista do século XV e os tratados chineses de seiscentos anos antes dos italianos. Leonardo da Vinci se preocupou com a maneira como eventos atmosféricos determinavam as oscilações de cor e nitidez na representação da profundidade. De outro modo, o artista e intelectual chinês Jing Hao se perguntava: como movimentar o pincel discretamente, do mesmo modo como um sopro de ar e luz atribui vitalidade aos elementos de um panorama?
Nas pinturas de Mateus Moreira, o que dá sentido às ações dos personagens e o lugar em que elas acontecem é a maneira de representar a atmosfera. O seu entendimento do que a pintura pode fazer se relaciona de maneira íntima com a capacidade que ela tem de refazer os significados desses elementos etéreos e vaporosos. Na exposição Nêmesis, Moreira trata a paisagem de maneira cênica. Em suas pinturas é a luz e o ar que emprestam gravidade dramática aos acontecimentos, por mais dramáticos que sejam as ações dos personagens em si mesmos. Sobre um solo baixo, plano e desgastado, vemos uma paisagem enevoada, poeirenta, onde tudo o que restou parece deixado para trás. Sabemos disso, porque vemos longe e não parece ter sobrado nem uma pilha de destroços. Tudo é terra devastada.
Em Oblívio (2023), por exemplo, o artista pontua a superfície com postes altíssimos, sem fios elétricos. Eles surgem entre linhas férreas abandonadas, invadidas por uma enchente. Ao fundo, os vagões se enferrujam, ganhando a cor da nódoa que o vento carrega consigo. Todas aquelas pessoas perdidas parecem viver o desamparo de uma sociedade pós-industrial devastada. A escala dos personagens é diminuta. Estão à deriva, sem reação. Uma luz esbranquiçada se funde com a fumaça e as nuvens. Não se vê nada para além de um brilho ofuscante no fundo. Nas canoas, nas margens da água, os personagens são mandados em nossa direção, mesmo porque não há para onde voltar.
A cena ocupa parte pequena da tela. É apenas uma consequência da ação do tempo. Em algumas das pinturas, os eventos são acompanhados de formas simbólicas arquetípicas; o artista inclui, por exemplo, pássaros e fósseis em trabalhos como Nêmesis (2023), Mácula (2023) e Cárcere (2023). Com isso, parece fazer das ruínas o resultado de uma promessa vinda de outro mundo, outro tempo, de origem mítica. Não por acaso, o fogo que sobe aos céus em Mácula, sobe de maneira quase simétrica. Tal tratamento formal faz com que acontecimentos violentos e realistas sejam contados com o tom das profecias, das escatologias religiosas e das distopias.
Em sua maior parte, não obstante, o artista parte de imagens ou narrativas contemporâneas ligadas à violência racista, a conflitos fundiários, a opressão aos despossuídos e os genocídios. São temas políticos urgentes, do presente. Aliás, paradoxalmente, uma das telas mais fantasiosas e alegóricas da exposição é Compulsão (2023). Nela, Moreira se inspira em uma cena já histórica, saída do noticiário: o espancamento de Rodney King, em Los Angeles, em março de 1991. O fato foi capturado por uma câmera de vídeo doméstica, e, como imagem, se tornou exemplar da denúncia da violência policial contra os negros nos Estados Unidos. Ela segue a repercutir até hoje, na luta antirracista em diferentes latitudes.
O artista toma um dos frames do vídeo e recompõe a imagem. Em primeiro lugar, três figuras são distribuídas no centro da tela, seguindo formas de composição tradicionais. Lá, vemos um homem proteger a sua cabeça, enquanto outros dois o surram a golpes de cassetete. O movimento é de ataque violento e de uma última tentativa de se defender. Tingida de laranja, a cena parece acontecer sob o calor tórrido de um deserto mítico. Ao redor da ação, o artista distribui personagens imobilizados, a assistir o espancamento com sádica compenetração.
Na pintura o flagelo não tem data e nem cenário verossímil. Acontece em um cenário alquebrado que pode estar no presente, no passado ou no futuro. Olhamos ao centro da cena, para a violência, como os perversos personagens das margens. Aqui a opção formal também é uma opção moral.
Tal indefinição do tempo está em todas as pinturas. Embora a feição seja de uma ruína, a imagem não está no passado e nem no futuro. Ela é o presente, mais especificamente, aquele presente nas periferias das grandes cidades brasileiras. O artista, como alguns dos melhores escritores e cineastas brasileiros contemporâneos, recria esta experiência como algo que acontece já depois que se cumpriram as predições apocalípticas, em tom grandiloquente e romântico – como são os cenários de algumas pinturas. Depois do fim, aquelas pequenas figuras ainda têm muito a enfrentar.
Tiago Mesquita
*“Você não sabe dizer, nem adivinha, pois conhece só / Uma pilha de imagens partidas, em que bate o sol / e a árvore morta não dá abrigo, e o grilo nenhum alívio / E a rocha seca nenhum som de água”