Força Bruta por Frederico Coelho

Gabriela Machado
Agosto 27, 2011

Há alguns anos, Gabriela Machado encontrou um novo espaço criativo em sua vida. Ao lado da pintura – ofício que vive intensamente na beleza bucólica de seu ateliê –, ela elegeu a música como outro cerne de sua relação com a arte. Mas não é qualquer música. Entre todas, Gabriela elegeu o samba, mais especificamente o samba que emana da batida do pandeiro. São sua síncope e seu movimento rítmico que, assim como suas tintas nas telas em branco, espalham vida rumo ao mar do prazer estético. Quando não está pintando ou vivendo o lado cotidiano de sua obra, Gabriela está nas rodas de samba, mergulhada na sua prática comunitária, democrática, sem hierarquias e organizadas apenas pelo intuito da alegria sonora.

Lembremos aqui que o samba e as artes visuais sempre foram parceiros felizes no Brasil. De Heitor dos Prazeres e Di Cavalcanti a Hélio Oiticica e Carlos Vergara, esse diálogo criativo resultou em belos momentos. No caso de Gabriela, o samba impregnou seu olhar para o mundo, batizou suas telas com nomes de cabrochas, mostrou-lhe as gingas e as filosofias de vida que só os sambistas atingem em formato sublime e, ao mesmo tempo, popular. A beleza de Cartola ou Guilherme de Brito, a crueza de Nelson Cavaquinho ou a assertividade de Candeia entraram em sua vida e vazaram, em todos os sentidos, nas suas tintas.

Essa relação estreita entre música e pintura se torna óbvia quando evocamos uma palavra em comum para ambas: ritmo. O ritmo da música e o ritmo da pintura são elementos fundamentais em qualquer composição. Ambos nos trazem à mente jogos temporais e espaciais em que a dinâmica ou a cor regem contrastes entre cheios e vazios, entre lento e veloz, entre claro e escuro, entre dobras e recuos. Músicas e pinturas são arranjos cuidadosos de ocupação de espaços – sonoros e pictóricos.

Na pintura abstrata de Gabriela, uma das primeiras apropriações que podemos fazer diz respeito ao seu ritmo de cores e à sutil observação do caminho que elas seguem, esparramadas nas grandes telas brancas e nas aquarelas. As cores ditam o ritmo do olhar como partituras dessa música silenciosa e, contraditoriamente, explosiva.

Essa explosão sincopada, essa abundância de cor em um espaço limpo e equilibrado como suas telas, são movimentos que fornecem a base para sua força bruta. E, aqui, esqueçamos todos os sentidos negativos ligados à derivação de uma brutalidade. No trabalho de Gabriela, bruta é a matéria cor em sua plena potência física e poética. Bruta é a força que nos move quase inconscientemente para um mundo onírico, de puro prazer das formas em detrimento do circuito opressor diário do real ou do documento. Como a roda de samba, entramos na pintura de Gabriela sem saber a que horas vamos sair, pois são espaços cujos regimes são o prazer. É esse o bruto que toma os sentidos e nos arremessa para uma zona em que cada um de nós pode se desarmar dos lugares-comuns para inventar novas narrativas sobre a vida e as cores.

Espalhada, orgânica, em movimento, a ocupação do espaço em branco de suas telas pode, quem sabe, parecer gratuita na sua sinuosidade sensual. Não atravessemos o samba. Essa ocupação é, ao contrário, fruto de uma relação íntima e delicada de Gabriela com o seu ofício. Suas pinturas nos apresentam os meandros desse embate diário do pintor com cores, pigmentos, óleos, resinas, texturas e misturas. Na composição aberta, espontânea, em progresso, suas cores não competem, se abraçam. Aos poucos, as formas dão as mãos e se reinventam nesse lento caminho da mistura. Em um trabalho paciente, a pintora aplica camadas de tinta em suas telas e as deixa repousar em pleno processo de entrosamento. Assim, as grandes manchas de cor ganham intensidades diferentes a cada operação. O que parece um traço veloz são, na verdade, caminhos da cor maturados com a calma de um fim de tarde.

No atual quadro da pintura brasileira, Gabriela Machado traz em seu trabalho uma afirmação da abstração em contraponto a realismos e perspectivas fotográficas do mundo. Sua abstração, porém, não se fecha em diálogos internos da forma ou silêncios monocromáticos. Suas telas de pura cor em movimento oferecem o frescor de uma narrativa encapsulada, prestes a eclodir em frente aos olhos de todos nós. Há nesses trabalhos e na obra de Gabriela Machado uma alegria incontida de braços dados a uma fruição contemplativa. Alegria e contemplação que nos remetem ao prazer da pintura, ao vitalismo da arte. Talvez seja aí que resida essa força bruta que nos leva a suspender alguns momentos da vida prática para mergulhar em uma exposição de arte. Ou em uma roda de samba.

 

Frederico Coelho é historiador, ensaísta, pesquisador e professor da PUC

Texto publicado no folder da II Mostra do Programa de Exposições 2011, realizada no Centro Cultural São Paulo.