Evite Acidentes por Eucanaã Ferraz

Raul Mourão
Junho 1, 2022
Escultura. Pintura. Escultura. Fotografia. Pintura. Desenho. Tela. Papel. Aço. Barro. Madeira. Pintura. Campo de experiências.
 
Evite acidentes. Em vez da pressa, o tempo dilatado da fruição. Em vez do gesto descuidado, o cálculo intuitivo. Em vez do contato desatento – vazio de sentido – o toque que descobre a si mesmo e a sua capacidade de responder ao convite que lhe fazem a forma, a matéria e suas qualidades.
 
Evite acidentes. Um manifesto contra a brutalidade? Uma recusa do desastre em favor da ética. Evite acidentes. Um manifesto contra os perigos da irresponsabilidade? Abaixo a grosseria! Contra a destruição! Pelo diálogo! Contra a negligência! Contra o descaso! Evite acidentes. Pela aliança entre o imprevisto e a matemática. Evite acidentes. Um manifesto em favor da gentileza?
 
Os balanços são impecáveis – projetados e realizados com esmero e com o apuro da peça única – pousam sobre o objeto industrial, reproduzido em larga escala, puramente utilitário: a garrafa. São também o contemporâneo pousado sobre a atemporalidade do barro. O aço volta à idade do ferro. Os tempos se embaralham. Olhe! Veja! Toque. Atenção! Cuidado!  Olhe outra vez. Entenda.
 
O ateliê veio para a galeria com sua nudez de mesa de trabalho e de projeto, com sua inteireza de projeto e jogo. Evite acidentes. O prazer vence o tédio. O prazer triunfa sobre o desgosto.
 
Escultura. Pintura. Fotografia. Quantidade: tudo + papel. Qualidade: tudo mais papel. Atenção. Dedicação. Experimentação sobre o sensível. Mais papel + mais zelo. Mais papel = pouco. Mais papel = poema.
 
Jogo de presenças. Jogo de escalas: o aço em grande dimensão e a folha de papel entintada a preto. Jogo de memórias: o mundo gráfico, a gravura e o vagão de metrô flagrado pela tela do celular. Jogo de geografias: uma fotografia da praia e uma pedra de ferro, Rio de janeiro e Minas.
 
Jogo de matérias/naturezas: o mineral e o vegetal. Quem é mais transigente? Quem é mais severo? O aço balança, brinca, responde, o que era inflexível convida para a dança. Mas é preciso cuidado – porque é leve, porque é frágil; porque é grande, porque é pesado. Evite acidentes! O papel parece – à primeira vista – complacente, fácil, acessível; mas no trabalho é, ao contrário, matéria exigente, complexa, que requer o rigor e recusa o que o procura levianamente. Sua memória é milenar, sua presença repercute a atemporalidade das florestas. É intransigente com a mentira. É delicadamente in-tran-si-gen-te. É preciso muito, muito cuidado. É preciso verdade.
 
Tudo mais papel! Abaixo a ignorância que derruba o que se conquistou com trabalho e esperança! Mais habilidade! Mais sonho! Mais conhecimento! Mais entendimento! Abaixo a rispidez! Fora a brutalidade que goza com o obscurantismo! Um pouco mais de fineza, por favor. Evite acidentes! Abaixo a crueldade!
 
Experimente: faça o gesto certo. Ouça o que dizem o peso, as texturas, as configurações do corpo. Aceite a dúvida, não se assuste com o tamanho do que parece grande; não despreze as demandas do que parece pequeno. Viva a suavidade! Abaixo a exorbitância de força, de poder, de trevas! Por mais amabilidade! Viva os apóstolos da gentileza! Abaixo os profetas da estupidez e da deselegância!
 
Comecemos assim: evite acidentes.
Eucanaã Ferraz
Curador