Paisagens Possíveis por Paula Terra-Neale

Mariannita Luzzati
Setembro 15, 2022
Deixo aqui meu convite ao mergulho de ponta-cabeça no vasto espaço pictórico das paisagens abstratas de Mariannita Luzzati, em direção aos ricos e convidativos tons de cores, às intrigantes nuances de luzes e sombras e aos atraentes acordes de azul (como nas pinturas monocromáticas da Escola de Danúbio).
 
Talvez um memorial ao nosso bíblico sonho da terra prometida; ou um epitáfio às nossas históricas esperanças na conquista do novo mundo, o primitivo Eldorado. Uma visão apenas experimentada pelos nativos, ou a visão edênica imortalizada pelos românticos pintores-viajantes europeus?
 
Não existem imposições ideológicas nessas ‘paisagens’, nem narrativas, pois o que ela nos devolve é pintura. A opaca realidade da pintura é construída em um longo e intenso processo de acumulação de milhares de pinceladas, em dezenas de camadas pictóricas; os pigmentos de óleo altamente diluídos são inteiramente absorvidos pela tela. Cada pincelada é uma marca contabilizada na constituição do espaço pictórico, mas distingue-se pela sua economia. Há vinte e cinco anos trabalhando nessas pinturas, a artista atingiu o domínio de mostrar a obra sem evidenciar o trabalho.
 
É uma paisagem, mas sem a representação espacial clássica da paisagem renascentista. Desde a arte moderna (e abstrata) não acreditamos mais que o espaço pictórico exista em uma relação representacional clara com um espaço tridimensional reconhecível. Um caminho que foi pavimentado antes por Turner e outros pintores impressionistas explorando a pintura atmosférica, ou antes ainda, pelos pintores românticos centrados nos aspectos emocionais e psicológicos do espaço, como Caspar F. David.
 
As pinturas de Mariannita nos impactam fortemente com um aspecto imaterial, talvez porque nos revelam apenas a presença indexical de uma imagem fantasmática. Em seu processo, ela sempre inicia o trabalho a partir de uma fotografia. O desenho surge com a desconstrução desta imagem fotográfica, quer seja tirada por ela ou tomada por empréstimo de outras fontes ‘ready-made’. As imagens servem tanto como conexão para sua experiência de mundo quanto como inspiração do que a pintura possa a vir se tornar após o apagamento de edifícios, pessoas ou quaisquer outras intrusões na paisagem. 
 
Nos desenhos, a forma transparece na leveza do toque do grafite que levita no papel criando manchas delicadas como que pintadas em sutis tons de cinzas, contrariando até aos desígnios do desenho como esboço -- para Mariannita eles surgem do refinamento da pintura; nas gravuras a forma surge na imprecisão da policromia entre os planos diluídos dos banhos de água-tinta; na pintura a óleo pelas nuances cromáticas e tonais do pigmento, no contraste do claro-escuro, nas passagens de luz e sombras.
 
As formas, nesta obra, não se definem através de linhas, nem de contornos rígidos, e nem são nos dadas de imediato. Elas surgem na intensidade dos contrastes e vibrações luminosas que se propagam nos pigmentos e nos demandam um tempo para sua apreciação. A forma está apenas a um passo de se diluir completamente no espaço pictórico. Esses ‘corpos’ são presenças singulares, silhuetas humanas em estado permanente de aparição. Eles nos provocam também um estranhamento de como ocupam o espaço, como se fossem imagens desfocadas, embaçadas, ou expostas através de uma de câmara obscura, apenas uma espectralidade.
 
A artista resolve o problema das bordas, figura e fundo, enfrentado na pintura de Cézanne, mas através de uma prática surreal de brincar com nossa percepção, assim como se deu na pintura metafísica italiana. Na Scuola Metafísica, as pinturas de atmosfera onírica buscam uma conexão com a mente inconsciente, além da realidade física, daí o nome metafísica. Não podemos obliterar o fato da artista advir de uma família italiana, de ter estudado na Itália, e apesar de ter uma grande paixão pela natureza e luz dos exuberantes dos trópicos, notamos que talvez tenha partilhado de um veio da influência nórdica da filosofia via arte moderna. Nietzsche e Schopenhauer foram influências importantes para De Chirico por exemplo, penso aqui na menina que corre com o brinquedo (Mystery and Melancholy in a Street) ou nas paisagens e naturezas mortas de Morandi (Still Life with Mannequin), obras que usam sensações óticas e nos impactam com um deslocamento emocional. Certamente os adjetivos atribuídos à aquela escola, como poéticas, evocativas, profundas talvez também lhes caibam?
 
Não podemos deixar de mencionar, ao observar o desenvolvimento do trabalho, que houve uma mudança brusca no seu uso de cores, ou da falta desta nos últimos anos. Desde que o mundo lhe caiu literalmente sobre a cabeça sua gama de cores torna-se muito restrita, particularmente nota-se uma ausência dos vermelhos. Uma brusca retirada da função simbólica e expressiva da cor, mas que retoma agora aos poucos nas últimas obras.
 
Ao olharmos para essas pintura temos várias opções, tais como, refletir sobre nossa condição humana em relação predatória com a natureza; ou sobre a condição filosófica, histórica ou institucional da pintura; sobre os estudos de R. Barthes e a natureza indexical da fotografia; ou também podemos aceitar simplesmente que a pintura contemporânea negue qualquer possibilidade de autodefinição.
 
A artista não nos impõe uma imagem de paisagem, tal como aprendemos a reconhecer na história da arte; paisagens urbanas, cenas de inverno, paisagens marítimas ou campestres. Ela trabalha na definição conceitual do que é ou possa ser paisagem, sua ontologia. 
 
Em suas próprias palavras, essas imagens sugerem que o espectador contemple e reflita sobre o vazio e o silêncio, que é hoje a nossa maior necessidade. 
 
Percebemos esse convite como uma delicadeza. Estaria Mariannita nos convidando a um verdadeiro encontro meditativo com a obra para vivenciarmos o silêncio essencial da pintura?
 
Paula Terra-Neale
Historiadora da Arte, Pesquisadora, Curadora Independente e da plataforma Terra-Arte