Estilingue
Estilingue é mais que um nome. Por trás desse objeto, que comumente conhecemos como um brinquedo de criança, operam os conceitos de um programa que tem como propósito dar visibilidade e apoio na formação de jovens artistas, promovendo a inserção de novas vozes no mercado de arte. Esse objeto nos ensina, cedo demais, a relação íntima entre criação e destruição, entre brincadeira e potência bélica. É um instrumento de arremessamento e ruptura.
A curadoria desta primeira edição dedica-se à pintura, partindo do fértil cenário belo-horizontino para pensar o meio pictórico em sua contemporaneidade. Em uma cidade que abriga duas importantes escolas de arte públicas, uma cena museal consolidada e a presença seminal do Inhotim, a linguagem pictórica mantém-se como território de intensa fermentação, contexto que me permitiu acompanhar de perto o desenvolvimento consistente dos artistas aqui reunidos. Longe de qualquer noção de esgotamento, a pintura contemporânea afirma-se justamente por sua capacidade de absorver o mundo e devolvê-lo como questão aberta. A pintura é, em si, um estilingue: carrega a memória da tradição e do gesto, a coragem da ruptura e a precisão do que deve ser dito.
Num contexto internacional marcado pela velocidade digital e pela assimilação crescente de inteligências artificiais no processo criativo, a prática pictórica reafirma-se através do gesto corporal, da fisicalidade da matéria e da temporalidade própria da fatura. Os artistas foram selecionados por desenvolverem pesquisas consistentes, encontrando-se num momento particularmente rico de suas trajetórias, quando constroem as bases de seu discurso plástico, amadurecem e se libertam progressivamente das múltiplas referências que dialogam com a longa tradição pictórica da qual se inserem. O peso desta tradição não se apresenta como lastro, mas como âncora, uma forma de preservar o sensível frente ao virtual, transformando a pintura em território de resistência ante a complexidade do contemporâneo. Mais do que uma escolha linguística, a opção pela pintura manifesta-se aqui como posicionamento crítico. Estes artistas seguem em contínua construção, um processo que esta exposição busca fortalecer e dar visibilidade.
O recorte proposto não ambiciona definir uma "pintura belo-horizontina", mas revelar, a partir do cenário local, a vitalidade de jovens artistas que tensionam os limites do meio. A seleção organiza-se em núcleos temáticos intercambiáveis que funcionam como constelações provisórias, mapeando poéticas que se entrecruzam e dialogam. Esta estrutura busca tornar visível a diversidade de investigações que convivem no mesmo espaço-tempo criativo, onde classificações tradicionais cedem lugar a trânsitos fluidos entre o figurativo e o abstrato, entre a representação e o puro acontecimento matérico e entre a ampliação do campo e a intermidialidade linguística.
No eixo das Abstrações e Quase-Abstrações, a classificação tradicional esvai-se. Diferente das vanguardas do século XX, cujos rompimentos eram programáticos, a desconstrução da forma aqui surge como desdobramento orgânico de pesquisas individuais. Aparentemente não-figurativas, muitas destas obras mantêm uma ligação visceral com o mundo observado, operando como "semi-abstrações" ou como novas formas de figuração.
O núcleo do Retrato reafirma-se como campo de força política e subjetiva. É através dele que identidades são afirmadas, tensionando questões raciais e de gênero, ao mesmo tempo em que se problematiza a condição do indivíduo na contemporaneidade. Já o núcleo Paisagem surge como gênero reconfigurado, um testemunho crítico do mundo. A arquitetura urbana e sua frieza impessoal contrasta com a estrada como símbolo de um êxodo em busca de lugar, refletindo um mal-estar ou não pertencimento existencial perante o espaço que habitamos.
A urgência do presente manifesta-se no núcleo Temas Políticos e Ativismo Urbano, onde a pintura assume um caráter denunciante. Cenas que aludem ao autoritarismo servem como alerta para a fragilidade democrática, enquanto outras obras, as que tratam das "poéticas do hoje", contestam o suporte tradicional e reivindicam um lugar para a arte no debate público, aproximando-a radicalmente do mundo.
Por fim, a exposição se expande em duas frentes que desafiam os limites materiais da pintura. Materialidades Expandidas investigam suportes e matérias não convencionais, privilegiando a reflexão simbólica e sensorial sobre a representação. E, por sua vez, as Instalações transportam a pintura para o campo experiencial, criando ambientes ficcionais e imersivos onde o espectador é incluído num espaço de percepção múltipla, completando o arco que vai do retinal ao corpóreo.
"Estilingue" é, assim, um mapa de um território em ebulição, onde a pintura se confirma como o meio privilegiado para tensionar o presente e projetar, com precisão e potência, os questionamentos essenciais do nosso tempo.
Alan Fontes, outubro de 2025
ESTILINGUE
1ª edição: Estados da Pintura
04 de outubro a 08 de novembro
Abraão Veloso
Alanis Margarita
Bárbara Elizei
Bárbara Ferreira
Cavi Brandão
Fernanda Gontijo
Fernando Moreira
Gabriela Carvalho
Heitor Fernandes
Iago Marques
Lucas Matoso
Riel
A 1ª edição será dedicada à pintura e terá curadoria de Alan Fontes, artista com duas décadas de pesquisa na linguagem e professor da Escola de Belas Artes da UFMG. Seu olhar reflexivo selecionou 12 jovens artistas que exploram as possibilidades da pintura hoje.
A exposição inaugural ocupa o espaço principal do primeiro andar. Além da mostra, o programa inclui um ano de mentoria com profissionais atuantes, participação em feiras e uma exposição final. Um impulso essencial para a nova geração de artistas.