Sutura: Sandra Antunes Ramos
Sandra Antunes Ramos trabalha com a lógica da série. Define princípios precisos, e varia em torno deles. Desta vez, ela parece ter reduzido o número de procedimentos, cores, tonalidades e regras. Traz um conjunto de desenhos feitos com lápis preto, aparência gráfica, em que uma forma compacta e densa jaz sobre um feixe de linhas finas, retas, espaçadas por intervalos que buscam uma regularidade, a formar um gradeado. Tal conjunto linear atua como um apoio estável para a forma preta.
Por se tratar de uma situação de repouso, podemos aproximar, e apenas aproximar, os desenhos de um dos gêneros tradicionais da história da arte: a natureza-morta. Tal tipo de composição temática, que se consolidou no século XVII, representa objetos imóveis, em quietude e equilíbrio, escorados sobre uma superfície qualquer em uma determinada ordem.
As estruturas de Sandra, por óbvio, não são figurativas. Ela lida com linhas e formas geometrizadas que atuam diretamente sobre a superfície do plano. Um equilíbrio laborioso está, contudo, no centro de suas preocupações. Ele tem relação com a diferença de densidade entre a forma preta e os traços delgados, a ocupação do espaço por essas partes, mas também com o modo como um terceiro elemento, uma linha orgânica de metal costurada entra nos trabalhos, como uma colagem, que de certa forma desfaz a frontalidade rigorosa dos desenhos.
Cada etapa é uma atividade metódica. Sobre o papel, a artista gasta mais que um lápis inteiro para preencher um retângulo, por exemplo, que vem no canto superior esquerdo. Nessas formas, não há indicação do que está por trás delas; tudo é preenchido com camadas e camadas de gestos a lápis.
Tais manchas pesadas assentam sua gravidade em uma cama de linhas horizontais, que atuam ali como solo para as formas mais pronunciadas. As linhas não ocupam toda a extensão da superfície. No espaço do papel, se define um ponto onde essas linhas começam e até onde param. Elas seguem regulares, como se estabelecesse apenas um ponto de equilíbrio possível em um vazio que não é mesurável, legível, passível de ser lido através de esquemas.
No lugar em que a forma está parada, a continuidade das horizontais é interrompida. Sob o preto, forma-se um diagrama gradeado, com linhas horizontais, verticais e diagonais vindas de um lado e de outro. Assim, a forma adensa as linhas, fazendo que sob ele tudo se escureça.
A relação da forma preta com o gradeado, por vezes é apenas a relação de peso, mas em alguns trabalhos, sobretudo os mais recentes, as linhas atuam quase como sombras metafísicas do objeto. Aliás, são sombras sem a mesma regularidade dos polígonos que a artista sobrepõe a elas. Em alguns, os quadriculados nem sempre são preenchidos, criando espaços em claro.
De qualquer maneira, há algo estável nessas ilhas circundadas de papel branco. Inclusive, pode-se acreditar que algo se manteve, temos alguma certeza, há uma forma plantada em chão firme. A duras penas e trabalho matutado, há alguma regularidade para se agarrar em meio a um lugar em desalinho.
Ela dura pouco. Pois junto ao desenho, um fio metálico costura curvas sinuosidades, sugerindo um espaço mais profundo do que o chapado das formas geométricas. Diante dessas linhas e metais colados sobre o desenho temos a impressão de um espaço indefinido, entre a planaridade e algum tipo de profundidade. Parecido com aquilo que foi chamado de vazio no trabalho de Mira Schendel.
Em trabalhos maiores, verticalizados, a tensão entre forma regular e espaço é acentuada. A costura amarra papéis desalinhados. As bordas de uns se desencontram com a dos outros. O que há de comum é a continuidade da forma preta. Ela surge como um totem, agigantado entre um papel e o outro. A mancha ocupa quase toda a extensão da superfície. Não parece, contudo, que essa coluna de grafite esteja reunida por solda. São manchas pesadas empilhadas. O ajuste faz pensar em um equilíbrio mais precário que o de uma viga. Talvez o de pedras pesadas em pilha.
Mesmo aqui, no entanto, o empenho parece ser de manter essa relação formal estável, pacificada, de um elemento que o tempo não corrói. A conquista de algum tipo de constância e aprumo se dá aqui pela técnica. No caso de Sandra Antunes, a partir de um tipo de desenho persistente e meditativo. Ele começa em lugar nenhum. Depois que algum horizonte está definido, a linha sugere outra, que chama a próxima até que se tenha um solo firme e possa fazer alguma coisa a partir disso.
Tiago Mesquita